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domingo, 30 de dezembro de 2012

Scriptum


“Minha existência é como nuvens que se formam do norte e trazem o grande rio, e fazem com que as mulheres se apressem a tirar as roupas dos varais... Crianças correm à luz de estrelas... Minha existência é chuva de verão...” (Rodner Lúcio)

Tinha o hábito de escrever antes de datilografar. O teclado não lhe permitia um rabisco aqui outro ali, não lhe permitia rascunhar uma ou outra figura. Quando pensava um texto, pensava também sua ilustração. Era a quinta ou sexta página arrancada, amarfanhada, jogada ao chão. Pensava ao filho, desaparecido a mais de uma semana.  Cai num ângulo de móvel, uma peça em madeira de fins do século XVIII... “Aquele móvel, quanto o senhor me dá por ele?”.  Perguntou o genro, querendo ver aquele quarto livre o mais rápido possível daquela tralha. “Duzentos reais!”, respondeu o comprador. “Só isto?” “Ele está um tanto quanto destratado, vou ter que investir um bom dinheiro nele, para torná-lo rentável, e duvido que tenha algum lucro.” “Eu esperava mais!” “Duzentos e cinquenta é o que eu posso oferecer!” “E quando o senhor vem retirá-lo?” “Na segunda pela manhã, pode ser?” “Tudo bem, eu o aguardo então!” “Então até segunda! Tenha um bom dia!”... Meus dias estavam contados, após trinta anos, seria encontrado. Desde que fora morar com a filha, Ellizha não visitava aquela casa. Não fosse a insistência do genro em vendê-la tudo se manteria como estava e minha existência silenciosa se manteria. Imersa em recordações de infância, Ellizha me acolhe e desamassa-me e me desempoeira, e como quem acarinha um ente querido lê-me como se lê a Sagrada Escritura: “Minha existência é como lágrimas incertas no rosto, de quem fica e espera que o que parte, parta como o sol, apenas para atravessar a noite... Minha existência é vigiar a noite”... Eram traços da mãe, que desde o desaparecimento inexplicado do irmão, se consumira naquele quarto... “Minha existência é uma noite profunda”, lembrou Ellizha dos versos da mãe, quando soube dos corpos do Araguaia. Ellizha amarfanhou-me novamente e jogou-me ao mesmo canto. Trancou a porta: “Na casa não se mexe!”

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

A BUSSOLA


“Tenho minha própria história...”. Lidhia desceu ao ateliê e desejou-me como um presente, e esculpiu-me incontida, frenética, febril, alucinada. Lidhia gravou em mim versos de um poema, dando-me uma sina: “Desejar e realizar são duas coisas diferentes. E chega o momento em que devemos decidir: assumir uma vida de felicidade ou uma vida com um propósito. São dois caminhos bem diferentes. Para ser realmente feliz um homem tem que viver absolutamente o presente, sem pensar naquilo que já foi ou naquilo que virá. Para uma vida de significado, o homem está condenado a viver afundado no passado e se obsecar com o futuro.” Lidhia sumiu no meio da noite, deixando-me sobre a mesa sustentando um bilhete: “tenho minha própria história, e ela nasce hoje quando tomo em minhas mãos meu destino com todas as suas incertezas, jogo-me em suas águas sem saber se alcanço o oceano. Não posso mais deixar que as águas passem                ...”. Ele me trás em seu bolso, está pronto para receber o prêmio da Academia. Também no bolso o discurso que fará: “Minha história começou no dia em que Lidhia beijou-me e partiu, deixando-me um presente que ela mesma confeccionou, naquela noite eu decidi que daria significado à minha vida, entraria nas águas do destino, mas não à deriva. Lidhia me tinha deixado uma bussola e eu sabia, mesmo titubeando, onde queria chegar...”. Durante o discurso encontrou os olhos marejados de Lidhia na terceira fileira, a voz embargou, os olhos também marejaram, um silêncio longo tomou conta do auditório que explodiu em aplausos. Lidhia desapareceu, entre os convivas. Ele segurou-me com toda energia e convicção: “Lidhia nunca me abandonara”.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Adieu Mon Coeur


Ela olha pela janela. Seus olhos acompanham a neve a cair e cobrir a copa das árvores, os campos, os vales, os montes.  Sobre a mesa o livro aberto à página tal. Nela o pescador lança-se ao mar com a promessa de voltar. À margem, acenando-lhe, a amada ignora a tempestade que o espreita para lançá-lo nos braços Iemanjá.
Chove! Ele, pela janela, acompanha a enxurrada e o copo plástico dançando em suas águas. Sobre a cama o livro à página tal. Nela a heroína combina com a companheira um jeito de encontrar-se com o amado sem que o pai e os irmãos saibam. O que ela não sabe é que a companheira trama contra ela para conduzi-la em armadilha e tomar-lhe o amado.
Lá e cá o ar se enche com a voz de Edith Piaf: Adieu mon coeur/ On te jette au malheur / Tu n`auras pas mes yeux/ Pour mourir.../ Adieu mon coeur/ Les échos du bonheur/ Font tes chants tristes/ Autant qu`un repentir...

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

CAOS PRIMORDIAL

Para Alexandre Squara

No principio era o CAOS, e o caos apenas era, não tinha titulo, não tinha nome. O CAOS era. Então veio a palavra, gerada, não criada; caos do caos.

“... graças às palavras, o mistério da natureza revela-se um pouco; pois nas próprias palavras reside uma parte das virtudes que elas designavam. Pronunciá-las ou escrevê-las de certa forma acaba por dar acesso aos segredos que elas recobrem, do mesmo modo que perceber as semelhanças abre caminho para o conhecimento das coisas...” (François Jacob).

A palavra não diz tudo, não revela a plenitude, revela olhares, percepções, sentimentos do espectador ante o percebido. Não diz só a coisa vista, diz mais de quem a ela admira (surpreende-se).

A Palavra era é será
A palavra não diz tudo, não revela a plenitude, revela olhares, percepções, sentimentos do espectador ante o percebido. Não diz só a coisa vista, diz mais de quem a ela admira (surpreende-se).

A Palavra era é será CAOS PRIMORDIAL!

Claudio Domingos

sexta-feira, 14 de setembro de 2012


Confira o belo curta de Matheus Borges

http://www.youtube.com/watch?v=FZ2u4X4Z0bw&feature=player_embedded

...onde o Pii acaba mesmo?



Hoje, durante a tarde, zapeando os canais de Tv (que aliás, andam péssimos), paro em um deles... o apresentador fala (o cinegrafista mostra): Paranapiacaba; atentei "será que ele vai revelar onde o pii acaba?" (e me ri por dentro) - Não, me enganei... alguns lugares 'familiares', uma ou outra viela na lembrança... playground, gira-gira, balança... eis a história que um morador/comerciante contava com voz rouca:
"No carnaval de 2008, meu bar tava cheio, umas 15 pessoas tomando cerveja e conversando, era mais ou menos 21:00, um amigo meu (Ricardo), encosta na janela com um copo na mão... olha pro parquinho, não tinha ninguém, estava vazio, mas a balança infantil estava balançando... Ricardo nos chama pra ver... "Já tá bêbado Ricardão? Tá cedo ainda..." - ironiza...
ram alguns amigos. Curiosos, vamos até a dita janela... e num é que balançava mesmo?! Impressionaste... porque a balança tem umas correntes grossas... Aí Ricardo diz: "Vamos até lá?" Fomos... tava tudo meio escuro... um dos clientes teve a ideia de levar uma câmera que tinha na mão e iluminar um pouco o lugar com o flash da máquina... Devagarzinho íamos nos aproximando (e o flash disparando), chegamos bem pertinho, continuava balançando... não vimos nada! nadinha! Voltamos pro bar morrendo de rir da cara do Ricardão... ele ficou meio encucado o resto da noite com a história..."

Algum tempo depois, o cliente da câmera resolveu revelar as fotos daquela noite... Numa outra ocasião, voltou ao bar e e trouxe algumas pra gente ver... Uma em especial chamou nossa atenção... era uma foto da tal balança que o Ricardo tinha visto se mexendo sozinha... Nela um menino vestido de branco e com sapatinhos antigos, sentado, divertindo-se!...

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Sevgilinin Yüzü

"Eu vou me matar! é só uma frase de efeito!", disse Sevgilinin Yüzü, "a morte não transfere responsabilidade"! E pulou. O sol modorrento de inverno apenas beijou-lhe complacente. E os prédios indiferentes mantiveram sua concretude inalterada... No mais o dia terminou como todos os outros. Os que se seguiram silenciaram um ato livre...

domingo, 5 de agosto de 2012

OCO DA TERRA

Eu nasci e vivi longo tempo de minha vida no Oco da Terra, um lugar úmido, sombrio, silencioso. Sons abafados chegavam-nos sem nos dar conta. Flash de luz de quando em quando nos alcançava as vistas.  Em Oco da Terra não havia palavra, apenas murmúrios tão surdos e incompreensíveis quanto os rumores que nos chegavam.  O olhar opaco, lúgubre, vazio era nossa linguagem.  Certa feita um estrangeiro, dizendo-se um dos nossos, desceu a Oco da Terra. Usou gestos e sons que não conhecíamos. Os sons era palavra – hoje eu o sei –,   e  doíam-nos os ouvidos incompreensíveis. Avançamos sobre o estrangeiro que se fazia como um de nós e o matamos. Depois disto, surgiram alguns que diziam ser este Aquele que nos viera apontar um outro mundo, um mundo preparado para nós, para além de Oco da Terra. Um mundo em que os sons abafados tinham sentido, o olhar brilhava invadido de luz.  Era preciso coragem para atravessar as frestas luminosas de Oco da Terra. Muitos haviam tentado depois que o estrangeiro que se dizia um de nós e que matamos nos visitou, nenhum havia voltado. Sem despedir-me dos meus – não me deixariam partir –, esperei o primeiro raio de luz e os primeiros rumores; lancei-me numa fresta.  À medida que avançava os rumores se intensificavam; meus ouvidos doíam, doíam, doíam. A luz, ao contrário, ia atenuando-se, e, a um certo momento, desapareceu. Não fossem os rumores cada vez mais altos, sentir-me-ia em Oco da Terra.  Meus ouvidos doíam, doíam, doíam. Estava decidido, estourassem-me a cabeça, iria até o fim.  Houve duas alternâncias de luzes intensas até seu desaparecimento até chegar a este mundo. Era noite, agora eu sei, quando venci minha jornada. O céu era cinza, e os rumores atenuados. Grilos, sapos, buzinas, risos, vozes, se confundiam a meu grito... Muitas vezes pensei em voltar para Oco da Terra, mas sei que os meus não me reconheceriam e o meu destino seria o mesmo do nosso que visto por estrangeiro o matamos. Aqui aprendi palavra e sei das coisas e dou-lhes nome. O mundo não é sombra e murmúrio: O mundo é discurso. E o discurso nos preenche de sentido, de certezas, de verdades. Em Oco da Terra tudo é o mesmo, e o mesmo é ordem.  Sinto saudades de Oco da Terra, do som abafado que nos chegavam, dos poucos raios de luz entre frestas, de sua umidade, do seu silencioso murmúrio. Sinto falta da sinceridade opaca, lúgubre e vazia do olhar dos meus. Aqui sou estrangeiro, lá, agora seria estrangeiro.  As palavras me encantam, mas estas luzes todas apenas afastam as sombras das coisas não as eliminam de mim. Oco da Terra é em mim. Outro dia me perguntaram: “Que lugar habita em ti?” Oco da Terra habita em mim. Meu grito é murmúrio e a luz de meus olhos opaca, lúgubre e vazia, diz-me: “És Oco, Opaco e Lúgubre. Palavras não te iluminam e preenchem. O silencioso vazio te preenche”. Não sou mais para os meus, a este mundo eu não pertenço. Sou Oco valendo-se de palavras.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

Sobre Literatura ou não

Eu sou um sujeito que não sabe das coisas, eu sou um sujeito que as quer saber.

(Rodner Lucio)



Para Fabio Miguel



Eu gosto de criar imagens, e gosto de alguns objetos: copos, facas, cadeiras, cama e algumas situações: Frestas de portas, aroma de café, fins de tarde após uma chuva repentina e passageira e o cheiro de tijolos molhados que impregnam o ar. Eu gosto da ideia de água brotando, escorrendo, avolumando-se. Eu gosto da cena da navalha percorrendo a pele. E navalha e língua para mim se confundem.  Quando eu pego um copo nas mãos, eu procuro intuir-lhe possibilidades que não sejam próprias do copo. Nele inebrio-me de amores que tive e de amores que não terei, estilhaço-o em mil pedaços e o recomponho, celebro a redenção do ser e tramo a sua morte, reúno os amigos, conspiro contra os governos, deixo pousado uma flor: “sou um copo no qual uma flor pousa”, uma das primeiras coisas que escrevi para Ione. A água que cai do chuveiro e escorre por meu corpo e leva algo de mim pelo ralo é como seu corpo quente, úmido, languido e toda vez que se vai, fechando a porta por trás de mim, algo de mim vai contigo. A literatura não sei defini-la a não ser assim, porque é uma arte, e eu deveria entender então o que é arte. Mas sou como a formiga que não sabe o que é trabalho e trabalha. A criação é um ato não apenas desnecessário e voluntário é sobretudo um ato ignorado. A onisciência do criador é ignorar que cria. Eu não sou escritor, não sou poeta, eu sou como formiga cortando folha. Se perguntarmos à formiga o porquê dela cortar folhas, se puder dar-nos uma resposta será com uma outra pergunta:  “então é folhas que eu corto?” Eu quero saber das coisas sem uma gramática necessária. Eu não sei das coisas, elas estão ante mim e dizem de si, dês-(es)crevê-las é não dizê-las como elas são, mas como elas se me apresentam, as coisas não se dizem toda do ângulo em que se me apresentam, tem faces das coisas que eu não alcanço. Eu as desdobro, eu as penso como poderiam ser se não fossem o que aparentam ser. O Tales e o Victor jogam com isto o tempo todo e eu me deixo influenciar por eles. É, então, literatura o desdobro da realidade presente, é decompor o em si das coisas (não me peça para explicar o que seja este em si, porque eu não sei: a formiga não sabe que folha é folha, penso eu.) vislumbrando os seus possíveis. Forjar realidades outras nas realidades presentes é, de repente, sem o saber, criar. Ninguém se coloca diante de algo e diz: “agora produzirei uma obra de arte”, isto é presunção. “O que será que posso tirar disto?” é a atitude do criador, a sua arte. É criação apenas o impensado, o que escapou ao planejado. A criação independe da vontade do criador. Eu me proponho a escrever um texto magnífico e me sai uma patifaria Eu traço algumas linhas, por vicio quase, e eis a obra que se inscreverá nos séculos. O que eu sei sobre literatura então é isto: é a arte de compor textos que retratam não a realidade, mas realidades possíveis, e que de quando em quando, doa-nos algo magnífico e significativo como a Divina Comédia, Don Quixote de La Mancha, Grandes Sertões Veredas, Sentimento do Mundo. Eu não sou literato, escrevo sem ser escritor, brinco, como o Tales com sua cadeira-carro-cavalo-condelijo do Max Stell, com as palavras e com as coisas apenas para sabê-las.

terça-feira, 26 de junho de 2012

A cadeira

A cadeira, eu disse a cadeira, não uma cadeira, ou esta cadeira. A cadeira estava próximo da janela, qualquer janela..., uma janela ou é janela ou não é. A cadeira estava próxima da janela e este menino, este que está aqui do meu lado e me chama de paie e não para de falar um instante, e diz que vai arrumar o seu carro, que não é um carro, mas uma almofada, e que deixou de ser almofada, porque este menino, que me chama de paie e não para de falar, já arrumou um parafuso, que não é parafuso mas uma “chafe da polícia” e a policia pulou na pixina que é o tapete, não um tapete ou este tapete, mas o tapete,  a pegou e a arrastou. A cadeira estava perto da janela e este menino que não para de falar e me chama de paie a arrastou pela casa, porque para ele a cadeira, não esta cadeira ou uma cadeira, a cadeira não é, pois que a transforma em cavalo, e não há cavalo algum aqui para que eu possa dizer “a transforma neste cavalo”, então a cadeira é cavalo e agora é carro e este menino que agora canta “num lava o pé, num lava num qué... que sulé.., está indo ao mercado, que é o quarto, em seu carro-cavalo- cadeira. “Quem não lava o pé filhinho?” “É  Maco Monka Piikita... num lava, num qué...”

sábado, 23 de junho de 2012

O Andarilho


Por MARCO MAIDA:
http://luisclaudiopt.blogspot.com.br/2012/06/papocom-marco-maida.html?spref=fb
Por um tratado sobre a impossibilidade da redenção
Condenados. É a condição de necessidade para qualquer pessoa. Nem todos são conscientes, mas são condenados. Impossível não sê-lo.
Condenados a ex-istir. Essa é a pior prisão, estar fora de si.
Pretendendo ser real, acreditamos que a coexistência nos co-loca em condição adequada. Percebemo-nos desde ai como sendo moradores de um lugar que já não é mais um si mesmo, mas outro. Fora de si é onde devemos morar; ex-sistir. Somos condenados, desde a condição de animais políticos a nos permitir ex-genia. A prisão que nega a cada um porque o outro é a referencia. Vejam, as pessoas andam e falam como se tivessem certeza de se comunicar. Impossível a comunicação. Reverberamos coisas para nos fazer acreditar ainda uma vez que a totalidade do real só pode nos permitir quando negamos, quando nos negamos. Não sou em absoluto, e sou condenado a não ser, para permitir a emergência do Outro, com um rosto que eu não reconheço, uma vida que não decidi ter, mas que me é oferecida como dom, como a minha verdade. Minha ex-sistencia Condenado em absoluto.
Não há redenção. Nenhuma força é possível para me a-locar de volta. Não há retorno. Por tanto que se suplique a volta do redentor, ele não vem, ..., ele não vem, ... e não deve vir mesmo, pois se vir nos impedira ainda uma vez de voltar para dentro, porque nos julgara pelos nossos atos usando as suas leis. Uma vez me disseram que o redentor já tinha vindo, e morreu na cruz para salvar as pessoas. Não entendi; se alguém tem que morrer esse alguém sou eu. Porque outra pessoa o faria em meu lugar?
Condenados ao exílio da única pátria, de nosso corpo, precisamos sair, precisamos encontrar as outras pessoas. E para isso é impossível ser sem ser aquilo que nos é determinado.
A flutuação do Mercado, e as suas imprevisibilidades não tem condição de representar o inframundo, os dois oscilam e são imprevisíveis, mas não de forma simétrica possibilitando analogia imediata, ..., não, não somos mercado oscilante, somos interioridade incomunicacional. Não somos Nec-ocio, mas ócio.
Certa feita percebi que um sociólogo defendia a redenção do trabalho: “o trabalho é bom, a Revolução industrial é que não conseguiu dar conta de um trabalho humanizado. Mas hoje, seres históricos que somos, conseguimos considerar aspectos redentores do processo de criação humana, e devolver ao ser humano o que lhe é mais precioso, a capacidade de criar.” Obtuso! Não percebe que ele é mais um dos que foi cooptado pela grande massa e acredita que é na ex-pressão que o ser humano se realiza. Não, só nos realizamos na in-trospecção, na ausência de expressão. Somos anteriores a linguagem, a verdade, a religião, a política, não somos nada disso que os artistas expressam com a sua técnica; maldito polegar opositor!
Não me senti minimamente tentado a ser profeta da ausência de redenção. Sabe essa história meio Zaratustra que sai em busca de Deus com o lampião aceso com o sol em pico; pois então, para alguns isso funcionou algum dia, anunciar o fim das grandes narrativas e das arquiteturas mundo firmadas como a apoteose universal. Mas as grandes narrativas continuarão a existir por mais que Zaratustra continue gritando.
Somos condenados a não ser nós mesmos e nenhum recurso é capaz de nos redimir.
Marco Maida é professor de filosofia, integrante da Associação Cultural Rastilho (A_CURA), mestrando na Faculdade de Educação da USP, autor do livro Memórias de Onã.
                                                                                                           

sexta-feira, 22 de junho de 2012

IDEOLÓGICO

“Dois homens sentados em torno de um problema buscam uma solução. Três homens sentados em torno de um problema fazem política”, dizia minha avó.

Rodner Lucio



Para o compadre Marco Maida que me colocou a questão



Vó estava na cozinha e picava couve para o almoço. No fogão o toucinho estourava. Tio Anastácio, entrou, pegou um copo: “cadê o bule? Tem queijo?” É do armazém do Galego?”  “Menino”, ralhou vó, “o almoço tá quase pronto, invés de ficar me rodeando como um Judas na forca, vai ali na venda, traz lá um punhado de farinha e ovos”. “Vou já, como um pedaço de queijo e vou... Entro pra política! O que a senhora acha?” Vó continuou picando couve. Tio Anastácio tomou o café, comeu o queijo  saiu. “Vó”, perguntei, “o que é política?” “É uma arte meu filho... a mais bela das artes... é também uma praga..., a mais terrível das pragas ”. Aquilo ficou burburindo em mim o almoço todo... “Você não é dado a política Anastácio”, disse vó, levantando-se para tirar a mesa. “Política?”, perguntou mãe, recolhendo os pratos “que novidade é está?”. “Eu vou entrar pra política”, respondeu tio, meio encabulado. Pai riu de uma piada, tia Alzira ruborizou-se como que comera pimenta, precisou tomar água. “Esta é boa!”, continuo pai a gargalhadas. “Pai”, perguntei, “que é política?” “É a forma de ganhar a vida fácil meu filho”, respondeu pai, ainda rindo. “Não meu pequeno”, interveio mãe: “é o desejo de mudar as coisas, porque nunca se está contente com as coisas”. “É sem-vergonhice” emendou tia Alzira, trazendo as xícaras. “É a coragem de lutar por um mundo melhor, onde todos sejam respeitados, tenham vida digna e tenham seus direitos garantidos”, discursou tio Anastácio. Pai riu mais ainda.  “É tudo isto meu filho”, disse vó, servindo café a tio Anastácio e pai; “é também o que leva, em nome da verdade,  a sustentar a mentira como verdade e a verdade como mentira; é o que leva os homens à guerra e à paz, a ser inimigos em uma jornada e aliados em outra,  é o que torna o convívio humano possível e também  impossível; é pois  a arte de construir o humano no homem e o perene risco de, para isto, destruir o próprio homem, sem o qual o humano não é possível...”  Tio Anastácio entrou para a política, nunca candidatou-se a nada, e jamais filiou-se a um partido. Talvez eu não tenha aprendido nada com vó que era iletrada. Tornei-me ideológico.

sábado, 16 de junho de 2012

Clarice Lispector


Eu gosto da metáfora heraclitiana do fluxo continuo. Às vezes fico horas acompanhando o fiozinho d’água que brota de sob o piso. “Seu pai que não dá jeito nesta infiltração”, dizia mãe “uma hora isto vira um rio”. Pai também gostava de ficar acompanhando-o. Picava fumo, rolava-o em palha e ficava ali, pensamento distante, contemplando o correr da água que às vezes ele represava “como criança”. Foi pai que falou de Heráclito, conversava com o compadre: “a vida é sempre uma surpresa, parece sempre a mesma, mas não é, é sempre diversa, irrompe a todo instante, esgota-se a cada instante, escorre, escorre, escorre... o que sabemos já não mais é... o que somos, já não mais somos”... Mãe nunca entendeu pai. Pai também não: “não faço questão de aprisionar-me”, dizia

Angélica tem olhos castanhos, de um castanho que é só de seus olhos. Eu os sentia perscrutar-me com um interesse que não sentia em outros olhos. Diante dela intimidava-me. Seu sorriso também me arrebatou no instante em que, ainda tímido, se me manifestou... Comprei-lhe um conjunto de lingerie que combina com sua pele jambada. Convidei-a para jantarmos e esticar a noite pela orla.

Tinha um momento em casa em que podíamos por fogo na casa que pai e mãe não dariam conta. Eu o percebi, quando Felipe, meu irmão, amarrou-me à mesa da cozinha, pra eu não contar pra mamãe que ele espiava Jhadiene, nossa empregada, pela fresta da porta do banheiro. Eu gritei, gritei, gritei... Nem mãe, nem pai se deram por vivos. Jhadiene, depois de algum longo tempo, ainda com os cabelos molhados, surgiu esbaforida. Então, eu percebi que quando mãe e pai entravam pro quarto, com taças e vinho e colocavam aquelas canções italianas, o mundo podia acabar.  Não demorou muito pra eu perceber que os longos banhos de mãe, que deixavam toda a casa perfumada de suas essências, anunciavam o que viria depois, e que durante alguns anos povoou minha imaginação.

... “A primeira vez que saímos juntos dormimos em uma barca de pescadores...”, relatou-me mãe, certa vez.

Angélica deve estar no banho. A água escorre por seu corpo com receios adolescentes, quase quase pedindo-lhe desculpas, por tocar-lhe a pele, molhar-lhe os cabelos e infiltrar-se por seus polos e fendas. O sabonete desliza suavemente por seu corpo em movimentos circulares delicados, o frenesi que lhe assoma o faz escapar das mãos de Angélica, que despreocupada abaixa-se para retomá-lo do chão, tudo a seu redor deve ruborizar-se contendo o frêmito.  Aguardar pelo banho de Angélica deve ser  o castigo de cada elemento de seu banheiro, que se pudessem firmariam o tempo. O quanto devem invejar as loções e cremes que se aderem à sua pele. Quando Angélica apaga a luz do banheiro e fecha atrás de si a porta: é a desolação que se instala. Não tinha como descrever de outra forma a beleza de Angélica.

Quis pregar uma peça em Felipe. Sabia que Jhadiene aproveitava quando mãe e pai se encastelavam para tomar banho na mesma água que mãe deixava na banheira. Felipe aproveitava para ficar-lhe espiando pela fresta. O que eu não sabia que este era um jogo dele e de Jhadiene, e que já estavam em outra fase... Depois do almoço, subi pro meu quarto e esperei a primeira canção italiana. Passo ante passo, esperava encontrar Felipe olhando pela fresta da porta do banheiro, daria-lhe um empurrão que cairia no colo de Jhaidiene. Não tinha ninguém. Estranhei. Aproximei-me. Quis verificar se Jhaidiene estava no banho, lancei os olhos à fresta. O que vi me estarreceu, me confundiu, me encantou...: Jhaidiene nua sentada à beira da banheira com uma das pernas apoiada a uma banqueta e a outra aberta com uma toalha apoiada e Felipe correndo-lhe um aparelho de barbear... Sonhei com os lábios de Jhaidiene correndo meu corpo, roçando seus mamilos em mim, sussurrando em meus ouvidos...

“E neste instante-já vejo estátuas brancas espraiadas na perspectiva das distâncias longas ao longe – cada vez mais longe no deserto onde me perco com olhar vazio, eu mesma estátua a ser vista de longe, eu que estou sempre me perdendo. Estou fruindo o que existe...” Pai costumava ler em voz alta pela casa. Mãe cantarolava “l'indimenticabile Italia”.  Quando não estavam ocupados com as atividades da escola e da editora, ficavam horas na varanda nesta alternância de leitura e canto. Não raro promoviam sarais que viravam a noite.  Eu e Felipe brigávamos por tudo. Eu disse-lhe que sabia das coisas, que era pra ele ficar esperto... Uma tarde Jhadiene entrou em meu quarto: o perfume era de mamãe, Jahadiene de cabelos soltos...  “Penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença – sim? Não demoro. Obrigada...”

“Tua mãe tirou-me a corda do pescoço e amarrou-me a ela. Eu acho que é isto o amor”, disse-me pai...

Comprei um vinho tinto, com aromas de frutas escuras em compota, Segundo o produtor ele tem notas distintas de carvalho e especiarias. Espero que Angélica aprecie “pasta al funghi porcini” e “orata con carciofi e patate”. Aprendi a receita com “la nonna”, que dizia “una donna che non sa cucinare, non devi richiamare si suo uomo mange fuora”. Dizia isto à tia Antonella, que vivia desconfiada de tio: “quello farabutto”. Cozinhar é uma coisa fascinante, e la nonna dizia que: “quem sabe dar tempero e sabor à comida, sabe como dar sabor a vida e sabe o justo tempero de uma relação”. É pelo estomago que pretendo fisgar Angélica, que com seus olhos que me consomem, já me fisgou. Quando sorriu-me, vi-me lançado ao mar e em deriva a espero, como para seus aparelhos, sua ausência mi é desolação   

 “Devemos começar por estabelecer uma distinção entre literatura e estudo da literatura. Trata-se de duas atividades distintas: uma é criadora, uma é arte; a outra é uma modalidade do conhecer ou do aprender... a arte proporciona uma espécie de enquadramento que coloca fora do mundo da realidade a afirmação contida na obra”...

Eu sentia, enquanto discorria, esses olhos que me espreitavam e me consumiam. Senti o incomodo, e por um instante, mantive suspenso a linha de pensamento, cocei a cabeça, levei a mão ao queixo, perdi a noção do que ia dizer: “Professora” sorriu-me mortífera, “fala-me dos aspectos eróticos na obra da Lispector”. Era como se estivéssemos sós, Angélica e eu, naquela sala. Balbuciei qualquer coisa.

Combinei tudo com um pescador e aluguei-lhe a barca por esta noite.      

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Metamorfoses e Escritores

Ninguém pode se livrar do diabo de seu próprio destino. Aquele negócio que a cabeça da gente começa a se interessar é uma fatalidade que você não pode se livrar... Tom Zé

Para Jaqueline Rogério Borges

As crianças correm ao redor do lago. Acompanho o mergulho do pato atrás da migalha arremessada-lhe. Formigas carregam folhas. Não há canto de cigarras a acompanha-lhes a faina. Não, não há faina para as formigas. O pato não irá tornar-se o mais lindo Cisne. Arremesse a galinha de um despenhadeiro e ela não irá ganhar o céu, como águia criada no galinheiro. A lagarta sim não é lagarta, e sobe o tronco para encasular-se. Mas a árvore antes de ser árvore fora semente, broto,... A lagarta é semente de borboleta e dela não sairá um rouxinol, como este que pousa ante meus olhos. A lagarta é borboleta, sendo lagarta, como a criança que se forma no ventre desta jovem que me sorri é já homem ou mulher, no feto que é. Ser ou não ser não é a questão. Ser sendo, já-ainda não, é uma condição DNIastica. O escritor é está metáfora, cumprindo-se, negando-se, resistindo e tornando-se, na resistência, aquilo a que resite. Escritores não se produzem, como se produz carros e eletrodomésticos, escritores, como formigas, nascem escritores, e como cigarras não podem deixar de se arrebentarem, no que achamos ser-lhe canto, escritores hibernam, encasulam-se, enfiam a cabeça no buraco, ou nas nuvens, aninham-se, refugiam-se, na segurança tediosa do escritório, do serviço burocrático, do receio do “que irão dizer se eu não for hoje”, mas não escapam ao que são: E ESCREVEM. Como crianças correm em torno do lago.

... Não há bom senso, não há ameaça de fome, não há carro velho, não há cobrador batendo em sua porta, não há empobrecimento de sua vida... Não há nada que possa te tirar do fato de você ser vitima de suas próprias ideias... Tom Zé


terça-feira, 22 de maio de 2012

Tandara

Não queria vir direto pra casa. Voltar pra casa tem sido a última de minhas vontades. Desci então decidido a tomar uma ou duas cervejas. Fui  no Beirute, geralmente o Adair está por lá.  Pedi uma Vodka. Um grupo de alunos chegou logo em seguida, iam comemorar o aniversário de um deles. “Professor!... O senhor aqui?”. Tandara, uma moreninha, esguia, olhos esverdeados. Uma que senta no fundo, quase não fala, está sempre com aquela outra menina, a Patrícia, aquela que você vive dizendo: “está menina não vem pra escola, vem fazer ponto”... Tandara sentou-se do meu lado: “Senhor bebe pinga?” “Não é pinga, é Vodka”, respondi. “Uma cerveja na conta do Borges”, pediu um dos meninos. “Desculpem-me, mas eu não pago bebida para alunos!” “Não é o senhor quem diz que só é professor na escola? Então, nós só somos alunos na escola!” Tandara sorriu-me: “aqui somos Tandara e Borges”, tomando meu copo e bebelicando: “brhuuu!”. Senti o toque de sua mão sobre minha perna: “É forte né, desce queimando!”. Apenas sorri-lhe. “Nossa!” “O que ouve?”, perguntei-lhe. “O teu olhar, senti-me toda dentro dele!”, respondeu-me. “Vê, estou toda arrepiada!”. Pedi a conta. “Já, nem chegamos!”, Tandara desaprovava-me, fazendo beiço. Preciso ir, amanhã tenho uma turma pré-vestibular. Paguei a conta, deixei duas cervejas pagas, sai. “Então, até uma próxima vez Borges”, com uma inclinação de voz, que pareceu-me um convite. “Até quarta! Não bebam muito, não façam besteira!”... Vinha pensando naquela cena com Tandara, a sua atitude me surpreendera. Não era a mesma Tandara do segundo ano, que se anula num fundo de sala... Senti passos me acompanhando, virei-me uma duas vezes, mas não vi ninguém... Eu devia ter continuado em frente e vindo pra casa. Voltei ao Beirute: “eu sabia que você ia voltar!”, sorriu-me Tandara com um copo de Vodka.

domingo, 6 de maio de 2012

SITUAÇÕES CORRIQUEIRAS


A densa neblina não nos permitiu ver bem. Ouvimos apenas o baque seco. Quando percebemos o corpo estava lá estatelado. Nunca ficou provado o suicídio de Lux Aphonso. Durante anos cogitou-se crime passional, mas também nada se comprovou. O prefeito de plantão alegou perseguição política, que ele e a primeira dama tinham uma sólida união, e que: “jamais”, embora Lux Aphonso fosse seu chefe de gabinete, “tive qualquer contato com este infeliz. Categoricamente: eu não o conhecia”. A primeira dama também, em prantos, durante uma memorável entrevista, negou qualquer conhecimento do “sujeito”. “isto é intriga da oposição, que para atingir ‘Lauzinho’, maculam nossa bela história de amor”. Mas quando lhe perguntaram como ela poderia não conhecer Lux Aphonso, uma vez que estudaram na mesma escola e mesma classe do ensino fundamental ao termino do médio: “Ele devia sentar no fundo, eu era muito aplicada e estudiosa sabe, só prestava atenção aos professores”.   Ao fim passou-se por acidente. Devido a densa neblina Lux Aphonso não percebera a barreira de proteção e, por descuido, voo do décimo quinto andar. O que não ficou esclarecido é o que ele fazia àquela hora da noite em um prédio em construção e o que significava aquela peça de langerie em sua boca. Mas tudo me parece mais confuso agora, pois posso jurar que acabo de ver sair deste motel, em fim do mundo, Lux Aphonso de braços dado com – porque eu não tenho uma câmara. Todo mundo tem! – ‘Lauzinho’, que até hoje não explicou onde foi parar os recursos para o hospital municipal, que esta com as obra por finalizar desde que Lux Aphonso ali foi encontrado estatelado.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

A Lei de Newton

Abro os olhos e incauto percebo que as coisas se mantêm em ordem. As leis que as regem se mantêm. O copo cheio pela metade, não se esvaziou por todo: não pode! O liquido que o preenche pela metade não se avoluma e o transborda: não pode.    O relógio marca as horas e avisa-me o correr do tempo.  E tenho pouco tempo, alguns minutos apenas. Sento-me e levando os pés ao chão tateio-o buscando os chinelos no exato lugar em que os deixo todas as noites. Ligo a rádio e o locutor informa que é feriado e haverá sol: “A chuva parece ter dado um tempo, para quem vai curtir o feriado, o dia será de sol”... segue a canção...: “a sensação do momento...”. Alcanço com os pés os chinelos, calço-os e levanto-me. Abro a janela e a brisa fria da manhã invade o quarto, arrepia o corpo. Esta tudo em ordem, nada foi revogado. A natureza mantém suas regras... Tomo o copo verso o liquido que o preenche pela metade no ralo da pia. O liquido como se deve esperar escorre para baixo e aos poucos some ante meus olhos. Lavo o copo e o encho de água. Verso a água na cafeteira, coloco-lhe também o filtro e o café. Ligo-a, sua luz ascende e em segundos seu rumor característico me informa que está tudo em ordem.  O relógio não para, o tempo escorre e não o vemos. Tenho pouco tempo, tempo de tomar correndo um café. Visto-me às presas, tomo de uma golada só o café, desço as escadas correndo, por pouco perco o ônibus. Esbaforido sento-me e respiro aliviado. Afora o feriado, que trás um pouco de tranquilidade à cidade, nada está fora do lugar: “terá desfile, pronunciamentos, programas especiais, sorteio de brindes, manifestações...”. “Na noite passada”, leio de relance no jornal de um cavalheiro, “a polícia encontrou mais um corpo de mulher esquartejada próximo ao Parque das Nações. Segundo informou o delegado responsável pelo caso, ela tinha tatuado no corpo a lei de Newton: “Dois corpos não cabem no mesmo espaço”. É o quarto corpo encontrado nos últimos vinte dias com tatuagens similares. A polícia suspeita...”. Não consegui ler mais nada. Só ouvi o murmúrio do cavalheiro: “este mundo está perdido. Só Deus o pode salvar...” Levo a mão ao bolso, encontro a caneta e o bloco de anotações: “A energia não pode ser criada nem destruída: a energia pode apenas transformar-se”, anoto. Tiro do bolso o canivete e brinco com ele.


terça-feira, 1 de maio de 2012

ANUNCIAÇÃO

Teus olhos melancólicos acompanhavam o cair da tarde, a fina garoa banhando o gramado e encrespando o lago, os passos apresados de um casal indo para o ponto de ônibus. Eu lia Hölderlin de uma tradução inglesa…

 “And when Nature appears to sleep at some seasons,

Either in the sky or among plants or nations,

So the aspect of poets is also mournful.

They seem to be alone, but their foreknowledge continues.

For Natures itself is prescient, as it rests.”…

                                                  E quando a Natureza parece dormir em algumas estações,

                                                  Seja no céu ou entre plantas ou nações,

                                                  Assim, também o aspecto dos poetas é triste.

                                                  Eles parecem estar sozinhos, mas a sua presciência continua.

                                                  A própria Natureza é presciente, quando repousa.

Do apartamento ao lado vinha o aroma de café coando. “Vamos ao Capuccino?” Me perguntou. “Deu-me vontade de tomar café e comer daquelas brioches recheadas que eles vendem”.

                                                  “Toda criação, a Natureza sente o entusiasmo de novo,

                                                    De Um-eter do abismo,

                                                   Como quando ela nasceu do Caos santo,

                                                   De acordo com a lei estabelecida”, recitei-te.

Beijastes-me os lábios com ternura: “Eu te amo! Sabia?”... “Então, vamos!?, sorrindo me ternamente.

O Capuccino está sempre cheio, a esta hora é dificil encontrar um bom lugar. As brioches estão, como sempre maravilhosas, pareces uma criança diante de uma panela de doces...

É saboroso contemplar-te assim quando não te esvai, vagando o olhar por entre as pessoas e as coisas, procurando-lhes elos. “Eu gosto de dias assim”, dizes-me, “em que as pessoas andam encolhidas, esfregando as mãos, estalando os dentes... perdemos um pouco da arrogância, percebemos melhor a importância das coisas, de um afago, um abraço...”  

Proponho-te caminharmos pela ladeira dos bancos e passarmos pela Galeria. Você se enlaça a meu braço sob o guardachuva: “Só se me pagares um churros!”

“Acabas de comer dois brioches recheados”, retruco, carinhando-te o nariz. 

“Deu-me vontade de comer churros!”

Firmaste-te ante uma loja de artigos infantis. Entrates e fuxicastes em algumas gondolas. “O que achas?”, mostrando-me uma peça que cabe nas palmas de minha mão...

“Bacana! Pra quem é”, perguntei

“Para alguém que vai gostar muito de brioches e churros...”, sorriste-me.

Meu coração ainda pulsa euforia e incertezas. Com a mão pousada sobre teu vntre, tento dormir, mas o sono me abandonou: Assomam-me tuas palavras: “serás pai em breve!"

terça-feira, 24 de abril de 2012

Propósitos para dias Felizes


“Tô me afastando de tudo que me atrasa, me engana, me segura e me retém. Tô me aproximando de tudo que me faz completo, me faz feliz e que me quer bem.” (Caio Fernando de Abreu)
            

                Recebi há dois dias um comunicado que serei promovido e com isto deverei viajar para Bruxelas. Batalhei muito para isto. Agora faço parte dos Masters-Seniors de uma grande incorporação financeira.

                Olho para a janela com satisfação e vejo as roseiras e os Ipês que se preparam para florir. O gato brinca com um retalho achado não sei onde. Como eu gosto de Ipês, dão um charme todo especial ao inverno

                O cheiro do café já toma o ambiente e já sinto o seu sabor no aroma que me invade, e já ante-sinto o sabor da manteiga derretida no pão fundindo-se a mim, enquanto corro os olhos pelo jornal.

                Marta me sorri. Beija-me de leve os lábios, desejando-me bom dia. Eu a acompanho com os olhos despir-se e entrar no chuveiro. Seu sorriso é a segurança que tenho.  Conheci-a numa tarde de domingo, na casa de um primo.  Ela folheava uma revista e conversava com a prima em seu quarto. Eu e o primo estudávamos no escritório do tio para o vestibular. Fui apenas buscar um copo d’água. Ela também teve a mesma ideia... Trocamos apenas olhares e sorrisos tímidos... Marta é o que me faz completo...

                Nada me atormenta no momento, as crianças estão bem e sinto-me tão ligado a elas. O sorriso do mais novo quando chego é algo fascinante: “papazinho cegô, papazinho cego, oba!” O mais velho apresentou-me dia destes uma engenhoca que ele mesmo construiu com latas de refrigerante, tampas de garrafa e alguns parafusos. Disse-me ele que é uma maquina do tempo. Divirto-me muito com eles dois. Bruxelas far-lhe-ás bem.

                Quando não estou brincando com eles, leio algum bom livro. Atualmente estou lendo o Cury e a Gasparetto, e andei folheando o Içami Tiba.

                Qualquer hora desta, se a morte não me vem visitar, tomo eu a iniciativa, e irei eu mesmo visitá-la.

sábado, 7 de abril de 2012

È  il fulgore d’un attimo, fatale                           É o fulgor d’um átimo, fatal
solo a chi in cuore trema lo sgomento,                só a quem no coração trema o desespero

l’infinito del piccolo dolore                                 o infinito da pequena dor
che la mente incupisce                                         que a mente culpa

ne la nenia dei giorni;                                          na lamuria dos dias

né s’incrina                                                          se rompe
il turchino del cielo                                              o turquesa do céu

al pianto assurdo d’una creatura,                         ao choro absurdo d’uma criatura
come nota d’un canto sconsolato                         como nota d’um canto desconsolado


E l’armonia che l’universo muove,                      E a harmonia que o universo move,

fredda, immortale,                                                frio, imortal,
le dissonanze ignora del dorole                            as dissonâncias  desconhecedoras da dor

nei ritmi della legge naturale                                nos ritmos da lei natural
scandisce l’eterno, indifferente                             examina o eterno, indiferente

alla vita che spegne nel grigiore                            à vida que apaga na monotonia
la possanza vitale della mente                               o vigor vital da mente

e la forza del cuore.                                               e a força do coração.


Energia dissolvente, investe e annienta,                Energia dissolvente, investe e aniquila,
e l’umo e Il mondo,                                               e o homem e o mundo,

il fiume della vita,                                                 o rio da vida,
nel silenzio dei secoli,                                           no silencio dos séculos

e d’opre umane favole compone                           e ações humanas fabulas compõem
nel ricordo che stimola al conforto                       na memória que estimula ao conforto

se il grido disperato                                               se o grito desesperado     
ch’è fraterno retaggio di dolore                             que é fraterno retalho de dor

s’è composto in poético tormento                         se compôs em poético tormento


Mario Martone:  Posie                                                     Tradução: Claudio Domingos Fernandes    
In Poeti Contemporanei.
Cultura Duemila Editrice

sábado, 10 de março de 2012

Cidades

                                                                     http://esquinadamonica.blogspot.com/2012/03/cidades.html

Assisti recentemente Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, EUA,2011). Não sou especialista em Woody Allen, devo ter visto uns quatro, cinco títulos. Dos antigos apenas Hannah e Suas Irmãs e mais recentemente Vicky Cristina Barcelona, um gostoso passeio na Espanha temperado com Penélope Cruz e o muito talentoso e muito charmoso Javier Bardem (não dá para citar Bardem sem mencionar pelo menos esses dois adjetivos!).
 Mas sei que Allen é um apaixonado por Nova York e faz a alegria de muitos cinéfilos com visões de uma Nova York toda dele. E em Meia Noite em Paris, temos a sua visão de Paris. Um filme cheio de encantos, uma declaração de amor à Cidade Luz. E eu adoro declarações de amor à cidades. Adoro cidades. Paris é o meu maior sonho de consumo em matéria delas, pelas razões que o próprio filme enumera com muita propriedade. Sonho em passear por lá e construir, dentro de mim, a minha Paris. Sonhos!
 Conheci o Rio de Janeiro ano passado. Viagem de fim de semana. Foi tudo muito rápido, fizemos os passeios obrigatórios pelo Cristo e pelo Pão de Açúcar, passeamos por Copacabana, um tour pela cidade... ficou aquela vontade de fazer muito mais. Mas deu tempo do Rio me mordiscar e me fazer desejar voltar. Uma, duas, quantas vezes forem necessárias para construir um Rio que será todo meu.
 São Paulo. Não há declaração suficiente. Mas posso arriscar dizendo que a minha São Paulo começa na Direita, atravessa o Viaduto do Chá, dá um alô para o Municipal e cai na Barão de Itapetininga, e se diverte com os homens-placa. Volta passando pelo Sebo do Messias e outros sebos. Minha São Paulo não é fria, é fumegante nos milhões de cafés. E tem muita gente, gente de todo o tipo. A São Paulo que construí dentro de mim tem o meu pai e uma São Paulo que ele construiu dentro dele. Suas lembranças se misturam as minhas. Uma São Paulo dentro de outra. A minha São Paulo tem muito a Andréia, a melhor das companhias, e nossa paixão por arte. Tem Monet, Manet, Renoir e Degas esperando-nos a qualquer hora. Tem a Pinacoteca e um constante flerte na Estação da Luz. E tem um trem lotado indo para a Zona Leste. Lá continua a minha cidade, parando no Tatuapé, antes de desembarcar de vez no Itaim Paulista. Tem o número 456 da Jasom Xavier de Barros. Infância. Tem a casa da Márcia e nossas conversas no portão. A lojinha do Medeiros, primeiro emprego. Tem um supermercado e um cara que conheci por lá, um tal Marcos Roberto, com quem me casei. Tem muitas outras coisas na minha São Paulo, mas vamos ficar por aqui.
 E agora, Suzano. Uma cidade que ainda estou construindo. Mas já tem bastante coisa. Tem um pipoqueiro em cada esquina da Glicério. Tem o escritor e agitador cultural Sacolinha e sua energia inesgotável. Tem a casa do Marco Maida e um cheiro constante de felicidade. Tem a padaria e confeitaria Santa Helena, onde tudo tem gosto bom. Tem um monte de gente linda, uma Associação se formando com essa gente linda, tem nossos encontros. As meninas do escritório. Tem minha rotina a dez minutos de casa. Tem o Cícero e a Renata, e algumas paixões compartilhadas. A perfumaria das minhas primas Cacy e Fá. Tem mãe, pai e irmã. E meu próprio lar, retorno constante.
Tem essas coisas nas cidades que vou construindo dentro de mim.

quinta-feira, 8 de março de 2012

MULHERES

Eu me propus, há algum tempo, não tratar de assuntos dos quais não entendo ou dos quais mantenho alguma carga de preconceito. Como não entendo de nada e em tudo mantenho algum preconceito, vi-me na situação de quem se propõe a fazer regime ou mudar de vida no dia de amanhã. Deixo sempre para amanhã o aprofundar-me primeiro e dominar de maneira inequívoca um conceito antes de o comentar. Mas o vicio é maior que a vontade e me vejo entrando num campo do qual nada entendo e do qual me abundam preconceitos. Há quarenta e quatro anos convivo com mulheres, minha mãe, minhas avós materna e paterna, quatro irmãs, três tias, quatro primas rodearam minha infância. Até o inicio do ensino médio, com exceção do professor de educação física, eu estudei apenas com mulheres. Da quinta à oitava série eram 8. Depois vieram a Nilza, a Marta, a Marli, a Fátima, a Rosa,  a Jhoana, a Conceição, mulheres por quem me enamorei. Na adolescência Luciene, Lidiane, Cris, Esmeralda, Rita, Fátima, Selma, Zulene  formavam meu circulo de amizade e estão até hoje presentes em minha vida. Hoje, Selma Maida, Lygia Canelas, Monica Pinheiro, Cris Domingos, Ana Ribeiro, Nara Borges, Tais Gonçalves, Jackeline Lima, Daniela Bastos, Renata Pinheiro, compõem este universo pelo qual gravito. Tem ainda minhas alunas um universo que abrange mulheres dos 12 aos 70 anos. Tem Annamaria, mesmo distante, sempre presente em mim e tem a MULHER: Ione, que me compõem e me estrutura.  No entanto, o que posso dizer deste ser sem que incorra em desinformações e preconceitos: pouco ou nada. É mistério que se vela no revelar-se e encanta .  Então me silencio reverente e reconhecido da importância que vocês mulheres assumem em meu ser. Sim eu sou algo de todas vocês, não sei vos dizer, então: A Todas Feliz Dia das Mulheres.