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quarta-feira, 24 de abril de 2013

VOGAIS (A)


 
Por Antônio Nicodemos

  

Transformado os dias em vogais, andava sem força para ser. Era nova ainda, mas trazia no rosto uma espécie de ódio herdado. Talvez da mãe que não gostava de crianças e que ao saber de sua gravidez passava os dias sentada na mesa da cozinha, a se lamentar pelo que podia ter feito a Deus para que lhe mandasse uma cria naquela altura da vida. E por carregar tanto ódio em si, odiava a menina, que cresceu ouvindo as mesmas lamentações diárias do ódio da mãe e que assim, herdado a antipatia natural da família, era.

Enquanto fingia não se irritar com o barulho da torneira da pia, mexia no crochê da toalha da mesa pensando no que poderia ser diferente em sua criação para que fosse diferente agora.

E como toda boa mal resolvida, culpava a mãe pela sinceridade da infância e acusava a mesma por se quer lhe ter apresentado um pai.

Pronto. Caso encerrado. A culpa de ser o que é e de não ser o que gostaria é da mãe. Pronto. Já é morta mesmo. Melhor culpar a morta, assim não precisaria tomar nenhum tipo de atitude a não ser se lamentar pelo passado e a família.

Depois de passar do meio dia as quatorze remoendo mentiras e inventando recordações da mãe, resolveu “perdoá-la”. E num ato quase de heroína desceu do terceiro andar, atravessou a rua e foi comprar cigarro. 

Estava sem desde a madrugada e se negava a descer pra comprar. Culpa da mãe, que nunca a estimou e jamais pensou se quer em instigá-la a desafios bestas, como o de comprar um maço de cigarros, por exemplo.

Enquanto contava as moedas e reclamava pela falta de uma moeda de vinte e cinco centavos para facilitar a grande audácia de um novo maço foi interrompida.

 - Falta quanto, moça?

- Vinte e cinco.

 - Eu tenho.

Como assim eu tenho, pensou. Um estranho chega e se quer se apresenta e ainda lhe oferece uma moeda de vinte e cinco? Se bem que nem oferece. Foi uma doação. Quase como aquelas caixinhas em fim de ano ou “ajude o lar do c***** a quatro”. Para ela, aquilo foi quase um estupro moral.

-Não precisa.

 - Já dei.

 -Mas não precisa.

 - Você tem a moeda?

-Não.

 -Então? São só vinte e cinco, moça.

 Foi o ápice! Se sentia quase uma prostituta. Pensou no que o moço poderia estar pensando. Como alguém não tem vinte e cinco centavos e ainda sustenta vícios? Não deve valer a água que toma!

 -Eu tenho na bolsa, vou pegar.

-Moça, são só vinte e cinco centavos, calma.

 Quase morre. Mal conhece, nunca viu na vida. Que tipo de intimidade teria dado para que um transeunte atirado lhe pedisse calma? 

 -Eu não quero mais o cigarro, pode ficar pra você.

 -Olha. Espera. Se faz tanta questão dos vinte e cinco...

 O abusado agora lhe estendia a mão. Na espera dos vinte cinco que acabara de emprestar e que jurou que não precisava, que era pra ter calma.

Respirou. Mas não uma vez. Quatro. Culpou a mãe novamente por nunca lhe ter apresentado uma figura masculina que prestasse e que agora lá estava ela, tremendo feito gata que corre de cão por conta da necessidade de socializar poucas palavras e o pior: Por conta de vinte e cinco centavos! 

-Calma.

 Disse o tal a segurando pelo braço.

 Agora já é demais, já é uma audácia e tanto. Segurar pelo braço, sem mais nem menos.

- Escuta, será que eu não posso mais comprar cigarro em Paz?

 - Mas moça, eu só quis ajudar.

 - Pensou se eu queria ajuda?

 - Te vi toda aflita. Natural.

 -Natural é uma ova. Toma os vinte e cinco.

 
O moço, assustado com a aberração que testemunhava não negou, imagina. Recolheu os vinte e cinco e pediu um café, pequeno.

 Ela, fingia ignorar a existência dele, sentou ao lado mas se quer olhava de rabo de olho, estava estática como se a qualquer momento lhe oferecessem sei lá, um pai.

Passada a vergonha do constrangimento por ter sido tão ela naqueles míseros segundos na busca da moeda de ouro disse:

 - O senhor me desculpa, é que me assustei e hoje em dia, já viu.

 - Tudo bem, sem problemas.

 Gelou. Agora tinha percebido a face do moço, já que antes quase o esfaqueou com as unhas em pensamento. Era loiro, olhos claros, barba rala, cara de bolso sem fundo. Tinha a barba por fazer e no tom de voz uma certa audácia velada, dessas que despe sem querer querendo.

Mantinha um sorriso de canto de boca carente e tarado. Depois de passar todos os tipos de pensamentos, e de ter ela achado a questão dele ser loiro um charme:

 - Tenho dessas as vezes, puxei minha mãe.

-Sempre a mãe.

 -Como?

 -Nada não. Ta mais calma?

 -Sim, sim. Não sei o que aconteceu, não dou dessas.

 Mentirosa. Uma vez, tendo passado em frente a um posto de gasolina voltou pra surrar de bolsa o frentista por conta de um simples e sincero: Gostosa.

 -Faz assim, esqueçamos.

-Já não esta mais aqui quem quase apanhou!

Meu Deus. E ainda tinha senso de humor. Não que ela ligasse pra isso, mas tinha. Ao ouvir isso pensou que deveria ter mantido o vestidinho em vez de por a calça pela manhã. Gosta das pernas, se deslumbra quando se banha e até nisso, tem certeza que puxou a mãe.

 -Moço, tem cartão?

 -Cartão?

 Ela pensava agora em algum outro tipo de possibilidade humorista do moço.

 -Preciso fazer uma ligação.

 Era a chance. 

 -Usa o de casa.

 A chance de se redimir pela moeda de vinte e cinco, a chance de se redimir pela grosseria, a chance de anular a imagem de pseudo esquizofrenia, a chance de ter pela primeira vez um desconhecido subindo as escadas e a chance de parecer um pouco menos identicamente gritante, a mãe.


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Antônio Nicodemo

É ator e iniciou sua pesquisa como dramaturgo em 2004, aos dezessete anos, quando fundou a Cia Teatro da Neura, onde continua em pesquisa até hoje. Em 2011, iniciou suas experiências como diretor em A Menina da Cabeça de Bola (Prêmio Ensaiando Um País Melhor), e seguiu com a direção do novo espetáculo do grupo, O Velório (ProaC), onde também assina a dramaturgia. Atualmente, também mantém a página "Pra eu dormir" com contos, crônicas e pensamentos. Facebook: Antônio Lagreca Nicodemo.