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domingo, 30 de dezembro de 2012

Scriptum


“Minha existência é como nuvens que se formam do norte e trazem o grande rio, e fazem com que as mulheres se apressem a tirar as roupas dos varais... Crianças correm à luz de estrelas... Minha existência é chuva de verão...” (Rodner Lúcio)

Tinha o hábito de escrever antes de datilografar. O teclado não lhe permitia um rabisco aqui outro ali, não lhe permitia rascunhar uma ou outra figura. Quando pensava um texto, pensava também sua ilustração. Era a quinta ou sexta página arrancada, amarfanhada, jogada ao chão. Pensava ao filho, desaparecido a mais de uma semana.  Cai num ângulo de móvel, uma peça em madeira de fins do século XVIII... “Aquele móvel, quanto o senhor me dá por ele?”.  Perguntou o genro, querendo ver aquele quarto livre o mais rápido possível daquela tralha. “Duzentos reais!”, respondeu o comprador. “Só isto?” “Ele está um tanto quanto destratado, vou ter que investir um bom dinheiro nele, para torná-lo rentável, e duvido que tenha algum lucro.” “Eu esperava mais!” “Duzentos e cinquenta é o que eu posso oferecer!” “E quando o senhor vem retirá-lo?” “Na segunda pela manhã, pode ser?” “Tudo bem, eu o aguardo então!” “Então até segunda! Tenha um bom dia!”... Meus dias estavam contados, após trinta anos, seria encontrado. Desde que fora morar com a filha, Ellizha não visitava aquela casa. Não fosse a insistência do genro em vendê-la tudo se manteria como estava e minha existência silenciosa se manteria. Imersa em recordações de infância, Ellizha me acolhe e desamassa-me e me desempoeira, e como quem acarinha um ente querido lê-me como se lê a Sagrada Escritura: “Minha existência é como lágrimas incertas no rosto, de quem fica e espera que o que parte, parta como o sol, apenas para atravessar a noite... Minha existência é vigiar a noite”... Eram traços da mãe, que desde o desaparecimento inexplicado do irmão, se consumira naquele quarto... “Minha existência é uma noite profunda”, lembrou Ellizha dos versos da mãe, quando soube dos corpos do Araguaia. Ellizha amarfanhou-me novamente e jogou-me ao mesmo canto. Trancou a porta: “Na casa não se mexe!”

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