“Minha
existência é como nuvens que se formam do norte e trazem o grande rio, e fazem
com que as mulheres se apressem a tirar as roupas dos varais... Crianças correm
à luz de estrelas... Minha existência é chuva de verão...” (Rodner
Lúcio)
Tinha o hábito de
escrever antes de datilografar. O teclado não lhe permitia um rabisco aqui
outro ali, não lhe permitia rascunhar uma ou outra figura. Quando pensava um
texto, pensava também sua ilustração. Era a quinta ou sexta página arrancada,
amarfanhada, jogada ao chão. Pensava ao filho, desaparecido a mais de uma
semana. Cai num ângulo de móvel, uma
peça em madeira de fins do século XVIII... “Aquele móvel, quanto o senhor me dá
por ele?”. Perguntou o genro, querendo
ver aquele quarto livre o mais rápido possível daquela tralha. “Duzentos
reais!”, respondeu o comprador. “Só isto?” “Ele está um tanto quanto
destratado, vou ter que investir um bom dinheiro nele, para torná-lo rentável,
e duvido que tenha algum lucro.” “Eu esperava mais!” “Duzentos e cinquenta é o
que eu posso oferecer!” “E quando o senhor vem retirá-lo?” “Na segunda pela
manhã, pode ser?” “Tudo bem, eu o aguardo então!” “Então até segunda! Tenha um
bom dia!”... Meus dias estavam contados, após trinta anos, seria encontrado. Desde
que fora morar com a filha, Ellizha não visitava aquela casa. Não fosse a
insistência do genro em vendê-la tudo se manteria como estava e minha
existência silenciosa se manteria. Imersa em recordações de infância, Ellizha
me acolhe e desamassa-me e me desempoeira, e como quem acarinha um ente querido
lê-me como se lê a Sagrada Escritura: “Minha existência é como lágrimas incertas
no rosto, de quem fica e espera que o que parte, parta como o sol, apenas para
atravessar a noite... Minha existência é vigiar a noite”... Eram traços da mãe,
que desde o desaparecimento inexplicado do irmão, se consumira naquele quarto...
“Minha existência é uma noite profunda”, lembrou Ellizha dos versos da mãe,
quando soube dos corpos do Araguaia. Ellizha amarfanhou-me novamente e jogou-me
ao mesmo canto. Trancou a porta: “Na casa não se mexe!”
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