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sábado, 16 de junho de 2012

Clarice Lispector


Eu gosto da metáfora heraclitiana do fluxo continuo. Às vezes fico horas acompanhando o fiozinho d’água que brota de sob o piso. “Seu pai que não dá jeito nesta infiltração”, dizia mãe “uma hora isto vira um rio”. Pai também gostava de ficar acompanhando-o. Picava fumo, rolava-o em palha e ficava ali, pensamento distante, contemplando o correr da água que às vezes ele represava “como criança”. Foi pai que falou de Heráclito, conversava com o compadre: “a vida é sempre uma surpresa, parece sempre a mesma, mas não é, é sempre diversa, irrompe a todo instante, esgota-se a cada instante, escorre, escorre, escorre... o que sabemos já não mais é... o que somos, já não mais somos”... Mãe nunca entendeu pai. Pai também não: “não faço questão de aprisionar-me”, dizia

Angélica tem olhos castanhos, de um castanho que é só de seus olhos. Eu os sentia perscrutar-me com um interesse que não sentia em outros olhos. Diante dela intimidava-me. Seu sorriso também me arrebatou no instante em que, ainda tímido, se me manifestou... Comprei-lhe um conjunto de lingerie que combina com sua pele jambada. Convidei-a para jantarmos e esticar a noite pela orla.

Tinha um momento em casa em que podíamos por fogo na casa que pai e mãe não dariam conta. Eu o percebi, quando Felipe, meu irmão, amarrou-me à mesa da cozinha, pra eu não contar pra mamãe que ele espiava Jhadiene, nossa empregada, pela fresta da porta do banheiro. Eu gritei, gritei, gritei... Nem mãe, nem pai se deram por vivos. Jhadiene, depois de algum longo tempo, ainda com os cabelos molhados, surgiu esbaforida. Então, eu percebi que quando mãe e pai entravam pro quarto, com taças e vinho e colocavam aquelas canções italianas, o mundo podia acabar.  Não demorou muito pra eu perceber que os longos banhos de mãe, que deixavam toda a casa perfumada de suas essências, anunciavam o que viria depois, e que durante alguns anos povoou minha imaginação.

... “A primeira vez que saímos juntos dormimos em uma barca de pescadores...”, relatou-me mãe, certa vez.

Angélica deve estar no banho. A água escorre por seu corpo com receios adolescentes, quase quase pedindo-lhe desculpas, por tocar-lhe a pele, molhar-lhe os cabelos e infiltrar-se por seus polos e fendas. O sabonete desliza suavemente por seu corpo em movimentos circulares delicados, o frenesi que lhe assoma o faz escapar das mãos de Angélica, que despreocupada abaixa-se para retomá-lo do chão, tudo a seu redor deve ruborizar-se contendo o frêmito.  Aguardar pelo banho de Angélica deve ser  o castigo de cada elemento de seu banheiro, que se pudessem firmariam o tempo. O quanto devem invejar as loções e cremes que se aderem à sua pele. Quando Angélica apaga a luz do banheiro e fecha atrás de si a porta: é a desolação que se instala. Não tinha como descrever de outra forma a beleza de Angélica.

Quis pregar uma peça em Felipe. Sabia que Jhadiene aproveitava quando mãe e pai se encastelavam para tomar banho na mesma água que mãe deixava na banheira. Felipe aproveitava para ficar-lhe espiando pela fresta. O que eu não sabia que este era um jogo dele e de Jhadiene, e que já estavam em outra fase... Depois do almoço, subi pro meu quarto e esperei a primeira canção italiana. Passo ante passo, esperava encontrar Felipe olhando pela fresta da porta do banheiro, daria-lhe um empurrão que cairia no colo de Jhaidiene. Não tinha ninguém. Estranhei. Aproximei-me. Quis verificar se Jhaidiene estava no banho, lancei os olhos à fresta. O que vi me estarreceu, me confundiu, me encantou...: Jhaidiene nua sentada à beira da banheira com uma das pernas apoiada a uma banqueta e a outra aberta com uma toalha apoiada e Felipe correndo-lhe um aparelho de barbear... Sonhei com os lábios de Jhaidiene correndo meu corpo, roçando seus mamilos em mim, sussurrando em meus ouvidos...

“E neste instante-já vejo estátuas brancas espraiadas na perspectiva das distâncias longas ao longe – cada vez mais longe no deserto onde me perco com olhar vazio, eu mesma estátua a ser vista de longe, eu que estou sempre me perdendo. Estou fruindo o que existe...” Pai costumava ler em voz alta pela casa. Mãe cantarolava “l'indimenticabile Italia”.  Quando não estavam ocupados com as atividades da escola e da editora, ficavam horas na varanda nesta alternância de leitura e canto. Não raro promoviam sarais que viravam a noite.  Eu e Felipe brigávamos por tudo. Eu disse-lhe que sabia das coisas, que era pra ele ficar esperto... Uma tarde Jhadiene entrou em meu quarto: o perfume era de mamãe, Jahadiene de cabelos soltos...  “Penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco. Com licença – sim? Não demoro. Obrigada...”

“Tua mãe tirou-me a corda do pescoço e amarrou-me a ela. Eu acho que é isto o amor”, disse-me pai...

Comprei um vinho tinto, com aromas de frutas escuras em compota, Segundo o produtor ele tem notas distintas de carvalho e especiarias. Espero que Angélica aprecie “pasta al funghi porcini” e “orata con carciofi e patate”. Aprendi a receita com “la nonna”, que dizia “una donna che non sa cucinare, non devi richiamare si suo uomo mange fuora”. Dizia isto à tia Antonella, que vivia desconfiada de tio: “quello farabutto”. Cozinhar é uma coisa fascinante, e la nonna dizia que: “quem sabe dar tempero e sabor à comida, sabe como dar sabor a vida e sabe o justo tempero de uma relação”. É pelo estomago que pretendo fisgar Angélica, que com seus olhos que me consomem, já me fisgou. Quando sorriu-me, vi-me lançado ao mar e em deriva a espero, como para seus aparelhos, sua ausência mi é desolação   

 “Devemos começar por estabelecer uma distinção entre literatura e estudo da literatura. Trata-se de duas atividades distintas: uma é criadora, uma é arte; a outra é uma modalidade do conhecer ou do aprender... a arte proporciona uma espécie de enquadramento que coloca fora do mundo da realidade a afirmação contida na obra”...

Eu sentia, enquanto discorria, esses olhos que me espreitavam e me consumiam. Senti o incomodo, e por um instante, mantive suspenso a linha de pensamento, cocei a cabeça, levei a mão ao queixo, perdi a noção do que ia dizer: “Professora” sorriu-me mortífera, “fala-me dos aspectos eróticos na obra da Lispector”. Era como se estivéssemos sós, Angélica e eu, naquela sala. Balbuciei qualquer coisa.

Combinei tudo com um pescador e aluguei-lhe a barca por esta noite.      

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