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domingo, 19 de maio de 2013

QUARTO 231




Aos amigos Filé e Jack pela recepção prazerosa.

                A história que nos contaram foi outra e eu juro que não tive medo.
                O Senhor Filé, de gentileza impar, nos recepcionou e levou-nos até o quarto de nº 231. Enquanto o compadre tomava uma ducha para se refrescar da viagem, eu repassei alguns pontos da relação que deveria fazer na manhã seguinte.  Próximo da janela acompanhava o balançar dos salgueiros no entardecer de outono. Bateram à porta e eu atendi. Uma garota, por volta de doze anos, olhar dócil, sorriso trigueiro, pediu-me água. Estranhei mas fui ao frigobar e peguei um copo de água mineral. Quando voltei com o copo, a menina não estava mais à porta. Espichei o olhar para fora do quarto, olhei de um lado para o outro, mas o corredor era vazio. Retomei minha leitura e a contemplar os salgueiros.  No entre tempo, o compadre terminou o banho e ajustava seus pertences no guarda volumes. Novamente ouvimos batidas à porta. O compadre atendeu e era a menina pedindo água.  Ocorreu o mesmo com o compadre, que ao levar a água, não encontrou mais a menina. Depois de uma terceira ou quarta repetição do fato, decidimos deixar a porta aberta com um recado afixado: “se queres água é só entrar e pegar”.  Ao descermos para a janta, o compadre observou que no balcão da recepção havia um porta retrato com foto da menina.  “Senhor Filé”, comentou ele jocoso, “tua neta é deveras traquinas!”. “Perdão Senhor”, retrucou o Senhor Filé, “não entendi!”. “Sua neta”, retomou o compadre, indicando o porta retrato, “passou a tarde a nos pregar peças”. “Perdoe-me, Senhor! O senhor se refere à garotinha do porta retrato? Ela não é minha neta não! É minha filha aos doze anos! ” “Além de traquinas, sua neta se assemelha muito a ela! Uma bela menina!”, comentei-lhe. “Eu não tenho neta não meu senhor, minha filha, morreu muito jovem, estava por completar quinze anos”, observou seu Filé.  “O senhor está querendo nos dizer que...”, gaguejei. “Que vocês vão...” Não esperamos a resposta, saindo em disparada, quando ante nossos olhos seu Filé transformou-se na bela garotinha de olhos esbugalhados e cordas em mão.   

Love Story




Januario estacionou o carro. Esperou alguns minutos e, impaciente, desceu do carro e aguardou, caminhando de um lado para o outro.  Fumou um dois cigarros. Praguejou roendo os dentes. Ao longe um vulto foi ganhando forma, foi aproximando-se. Januario ensaiou um suspiro aliviado, ao mesmo tempo o coração acelerou, o suor brotou-lhe às mãos. Quando, Cleonice estendeu-lhe o rosto esperando o beijo, Januario atrapalhou-se todo. Cleonice sorriu...  O filme não era dos melhores, e Cleonice aguardava ansiosa a mão de Januario tocar a sua, esperava algum sussurro em seu ouvido, esperava... Januario ensaiava, ensaiava, ensaiava, mas o coração acelerava, as mãos tremiam, a língua se prendia ao palato, serrada entre os dentes... “A epifania deu-se e o mundo se acabou”, contou-me Januario, da seguinte maneira: “eu não tinha coragem homem, uma força descomunal prendia-me à cadeira do cinema, sedava-me de uma inércia descomunal. Mas homem, eu via Cleonice emburrando-se, levantando-se de seu canto e saindo da sala. Eu exasperei catatônico. Esvaneci, homem! Esvaneci!...   “Nunca homem nenhum disse-me coisa tão bonita”, dizia-me Cleonice, selando-me um beijo nos lábios, enquanto o funcionário do cinema me oferecia água.”    Cleonice ofereceu-me café, enquanto Januario me descrevia entre risos as confusões do casamento.

Essência Mágica

http://guitarraflutuante.blogspot.com.br/2011/08/essencia-magica.html

domingo, 5 de maio de 2013

NORMALIDADE



“A verdade tem a estrutura de uma ficção” (Slavoj Žižek)

No Lajeado o possível sempre foi uma luta como me lembra Christine Ramos: “O impossível é uma luta que travamos todos os dias contra a normalidade, para o possível acontecer”.
Quando era possível, mas não normal, minha mãe tomou-me pela mão, levou-me à escola e disse-me: “filha seja uma boa menina”. Naquela época o normal é que mulheres negras fossem domésticas, e domésticas não precisavam saber ler e escrever.
Quando era possível, mas não normal, Anastácio anunciou ter passado no vestibular.  Naquela época o normal era que os meninos do Lajeado, à idade de Anastácio, ou estivessem mortos ou estivessem presos ou, espremidos nos trens da central, buscando trabalho nos canteiros de obras na grande cidade.
Quando era possível, mas não normal, mãe enfrentou pai: “a menina vai continuar estudando”. Naquela época o normal era as mulheres serem mães-solteiras-viúvas aos quinze anos.
Quando era possível, mas não normal, voltar seguro para casa... O normal era a polícia invadir o Lajeado e bater e matar pretos pobres – e o Capitão Augusto fazia questão de lembrar: “não é uma questão de cor, é de localidade. No Lajeado ou se é marginal ou se é marginal” – Quando era possível, mas não normal, voltar seguro para casa, nos tornamos órfãos.