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quarta-feira, 26 de outubro de 2011

EXERCITE O TEU OLHAR

“Nosso tempo é marcado pelo desaparecimento de todos os referenciais, e, portanto, pela dificuldade de orientarmos no pensamento”.  Adalto Novaes

A Mostra de Referências Cênicas de Suzano, em sua sétima edição, traz-nos um convite instigante: “exercite teu olhar”. E tal convite nos leva a uma reflexão sobre o olhar a partir de uma questão: de que olhar se espera o exercício e com qual fim se espera tal exercício. Sim, porque o olhar é multiforme. Há, por exemplo, o olhar de descrédito, como há o olhar de desdém e mesmo o olhar entorpecido, este olhar que vê as coisas sempre as mesmas. Há o olhar de relance, o olhar técnico, o olhar de desconfiança, o olhar curioso, o olhar de espanto. Há o olhar indignado e o olhar resignado, o olhar perplexo e o olhar encantado. Enfim, há olhares e olhares. Qual olhar, então, se espera seja exercitado? Por se tratar de uma mostra cênica em que se joga com os sentidos e as emoções, o olhar que se espera, mesmo considerando que “cada espectador traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particular condicionada, uma determinada cultura...”, é um olhar que não dependa apenas da visão dos olhos, mas de uma interação dos sentidos às emoções capaz de conduzir ao movimento do pensar, que não se contenta apenas com a aparência das coisas, mas quer desnudar as coisas. Deste modo o que se propõe é um exercício de insubordinação ao instituído e dogmatizado. Pretende-se, portanto, um exercício provocatório.
Seja os sentidos seja as emoções são movimentos primeiros ao pensar, mas são movimentos que partem de fora; da relação com algo que lhes afeta. Qual é, então, o ponto, ou objeto de onde se propõe a provocação e, então; o exercício do olhar? Deste olhar, que diante do ambíguo: “a arte cênica é fundamentalmente ambígua”, procura conexões com o instituído, o real e o vivido. Isto eu colho de uma fala durante a abertura da distante 3ª Mostra: “O convite ao exercício do olhar o aponta para a cidade. Nossa terceira Mostra quer provocar o interesse pela cidade. É preciso provocar o olhar e excitar nossa percepção e compreensão da cidade”.

 Já há algum tempo escrevi uma carta aos artistas poaenses a este respeito e questionava-lhes sobre o nosso olhar sobre a cidade. Convocava-os a olhar para a cidade e dar-nos o que pensar, pois se não pensarmos a cidade, a cidade será espaço morto, entregue à fúria dos carros, à degradação e à falta de bom senso daqueles que a pretendem administrar. E quando a cidade padece, nós padecemos.

No entanto, parece-me, não temos tempo para olharmos para a cidade, não temos tempo para nos olharmos na Cidade. Falamos da cidade, da micro e da macro, como algo que não nos pertence, porque não a vemos como nossa, não nos vemos CIDADE.  Somos cidadãos, sem sermos com a cidade.

“Santo Agostinho dizia do tempo que ele é perfeitamente familiar a cada um, mas que nenhum de nós o pode explicar aos outros”. E Merleau- Ponty diz que “o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo.O mesmo é preciso que se diga da cidade. Todos os dias acordo, abro os olhos e após uma serie de ritos, junto papéis numa pasta, passo a chave na porta e , ao abri-la, deparo-me ante a cidade. Vejo-a e ela me parece habitual, familiar, sempre a mesma.   E o que vejo é o mundo ante meus olhos, a cidade detém meu olhar. Suas casas, seus caminhos, suas portas, seus rios, tudo me atraem e dizem de mim. “No horizonte de todas estas visões ou quase-visões está o mundo que habito, o mundo natural e o mundo histórico”, como uma extensão de meu copo. E talvez por isso, a dificuldade em poder explicar a cidade. A cidade é extensão de mim e mais, é uma mentalidade, um estado de espírito, um complexo de idéias, atitudes, qualidades e sentimentos coletivos. É preciso, então, pensar a cidade pensando-nos cidade, compreendendo-nos nela, não como espectadores, mas como atores que a concretizam.

Provocar o olhar e exercita-lo a partir da cidade é mover o pensamento para além do habitual, do cotidiano, do senso comum; é movê-lo deste eu individualizado em que nos tornamos para assumirmos o que de fato somos: um com outros num espaço comum. Somente um olhar a este nível de profundidade nos dá pleno titulo de cidadão.

 É preciso olhar-nos cidade. E olhar-se Cidade envolve uma mudança de postura, é não permanecer indiferente a sua sorte, deixando-a a mercê de especuladores e administradores que a pensam apenas como palanque promocional.

Aqui o papel da arte, do artista. O artista, cômico ou trágico, concreto ou abstrato, realista ou romântico, é um provocador (de pró- vocare – chamar para fora; excitar; estimular). E a arte, dissimulando, nos faz ver as coisas, sem nos apresentá-las. Ela nos provoca, nos estimula a superar sua ambigüidade. Instigando nossa imaginação e nossa inteligência, instaura novas possibilidades e novas exigências interpretativas. Com seu modo de proceder e fazer o artista aguça nossa sensibilidade, remete-nos às nossas incertezas e nos exige novas posturas. Ao vincular-nos à cidade, espaço de convivência, onde me percebo membro de uma comunidade orgânica, olhando-a ativamente, constato que mantemos uma relação singular e não posso assisti-la como mero espectador.

Este, portanto, parece-me ser o caminho a que nos conduz a Mostra de Referências Cênicas de Suzano: Provocar o olhar a partir da cidade, para olhando-a, perceber cidade e humano não se sobrepondo, mas fundindo-se um ao outro, ressonando em seus aspectos de diversidade e intensidade um no outro, realidades indissociáveis, tornando-me responsável por ela, tornando-a não apenas minha, mas algo de mim.

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