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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Pão de culpa

O relógio mostrava treze minutos percorridos e ele permanecia no ponto de ônibus, esperando o seu ônibus surgir na esquina. Uma garota com fones nos ouvidos ocupava o mesmo banco, fazendo companhia apenas a si própria, embora a noite houvesse acabado de chegar para os dois.

Sentia fome.  Não havia almoçado. Do outro lado da rua, na esquina, havia uma padaria. Olhou novamente o horário. Aquele ônibus costumava demorar uns vinte minutos. Era só atravessar a rua, comprar alguma coisa para comer e voltar para o ponto. Ia demorar a chegar em casa, o coletivo fazia tantos rodeios pelas ruas! Olhou para a garota dos fones, como que à espera de aprovação. Atravessou.

Já dentro da padaria, seu olhar meio esfomeado percorreu a vitrine e logo resolveu levar um pequeno pão doce de aparência bem razoável. No caminho mesmo para o ponto, deu a primeira mordida. Então veio o gosto. Gosto de pão doce velho. Gosto velho da culpa.

Devia ter uns sete anos quando aconteceu. Naquele dia, sua lancheirinha que levava para a escola carregava um pão doce que mamãe havia embrulhado cuidadosamente. Pátio cheio de outras criancinhas, mas estava só. Abriu a lancheira e tirou o pão.  Estava duro e velho. O cheiro. Deu uma mordida. O gosto. Velho.

Mamãe orava antes e depois das refeições, agradecendo o Pão. Pendurado na parede da cozinha, próximo à mesa, repousava uma reprodução de Jesus com os doze apóstolos e era na direção daquela imagem que o olhar da mãe se dirigia, enquanto fazia o sinal da cruz.

Envergonhou-se por não desejar comer o pão. Envergonhou-se por não querer levar o pão de volta e fazer desfeita com a mamãe e desfeita com o Deus que oferecia a refeição que ela tanto agradecia. Envergonhou-se por não ter coragem de oferecer o pão para alguma criança bem mais benevolente com aquele pedaço de comida que ele. Seu rosto avermelhou-se de imaginar jogando-o no lixo, no meio do pátio lotado. A vermelhidão tomou todo o seu corpo pequeno. Estava cravado nele o olhar dos doze apóstolos, que tinham saído do quadro da cozinha para o pátio do colégio, e faziam roda em volta dele, recriminando-o profundamente pelos seus pensamentos pecadores. Correu em direção aos banheiros, trancando-se em um deles. Com todas aquelas vergonhas lhe atravessando, cometeu uma última: atirou o pãozinho na lixeira do banheiro.

É, devia ter uns sete anos quando aconteceu. O tempo passou, o batizou, crismou e comungou. E sentado no banco do ponto de ônibus, com aquele pedaço de pão velho atravessado na garganta, perguntou a si mesmo se o Deus da mamãe havia perdoado seu gesto naquele dia, no primário. Era estranho sentir aquele sabor novamente, o de sua culpa católica. A cor pintou novamente a sua face, ao lembrar da imagem do pão doce boiando em meio ao papel higiênico usado, naquele banheiro sujo. Engoliu o pedaço em seco. Três décadas depois para sentir aquele gosto novamente.


A garota dos fones tinha ido embora, em algum ônibus que havia passado, sem que ele percebesse. O coletivo não chegava para levá-lo adiante. Um pedaço de pão doce o havia levado para trás.

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