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terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Novas flores para maio

                                                                               Por Lygia Canelas - http://canela-s.blogspot.com

O Vie Moderne fica no meio do nada. O tempo lá é

mais lento e tudo é quente, abafado e sulforoso...Homens estranhos

surgem procurando os serviços daquelas moças,

e até mesmo os animais: cães, lobos, onças e há quem diga que

Berta dormira uma vez com duas cobras, cada uma por

uma entrada e que berrou a noite toda, ora de dor,

ora de pavor, ora de intenso e sofrido prazer.



A noite nesse resto de lugar não tem lua e o dia tem um sol gigantesco, quase não podem sair do chalé.

O “mascate”, Panúsio, passa uma vez a cada 120 escondidas do sol mais ou menos, sempre com novidades, roupas, perfumes, discos de músicas antigas ou de mulheres com agudos gritos líricos sem nome, nem rosto...

Um dos dois únicos livros da casa, esquecido por um antigo cliente, é um dicionário de (as medidas não servem pra mais nada) 8 cm de grossura e quase 40 de comprimento. As meninas até sabiam ler e incorporaram palavras diferentes ao próprio vocabulário,

pra passar o tempo... Fazem massagens clitorianas umas nas outras. Rituais cé(l)ticos.



O sol não se punha nunca, a terra girava durante o dia, desnorteando os homens, e o sol ia parar atrás de montanhas distantes e

por algumas horas a luz ambarina cobria os horizontes que podiam enxergar os olhinhos miúdos e meio burros

daquelas moças que sabiam “endefluxo” mas não quem fora “Foucault”. Sabiam contar, e

 contar histórias inventadas a partir de uma palavra doida tirada daquele dicionário, mas já não

se lembravam

das

pró

pri

a

s

histórias


A Bíblia

rasgada, cortada pela metade, parava no dilúvio.


Se as meninas não fazem sexo com os homens eles não as alimentam, alguns animais as procuram como fêmeas, pois também há poucos sobreviventes do reino animal, mulheres princesas e escravas.

  
Zefa está velha demais .. "Bierra?" repete Adelita, quase se comunicando... (Adelita era Espanhola, mas já estava paraguaia àquela altura)

Zefa dá prejuízo com o cigarro. Taí uma coisa que sobreviveu no mundo: o cigarro.


São sete as princesas: Adelita, Berta, Rosa, Úrsula, Dima, Perla e Josefa. São quinze os enterrados, fetos, ossos femininos, cães, um gato, três canários, e um porco selvagem homem.



Detalhe encontrado por Rosa, um dia sem querer, num dicionário. Dima: s.f. espécie de cabra pequena da África.


Quem das sete está escrevendo essa história?


Planeja-se inconscientemente que Zefa morra logo e que se libere o quarto grande para que se divida entre quatro das garotas que se amontoam no quarto de dispensa.


Será lindo o dia em que tudo se inunde de água, porque a água em grande quantidade será azul,e azul era uma cor

pouco vista lá do Vie

Moderne. Quando o sol ia parar atrás das montanhas os clientes começavam a aparecer.

Alberto era pastor,

caminhava pelo mundo todo e sempre vinha visitar Josefa, porém ficou muitos anos

sem dar notícia, as corujas não traziam mais as suas cartas, e a última que escreveu estava fria, com a letra

escrita com pressa. Josefa notara que as cartas vinham gradativamente (outra palavra que ela conhecia) diminuindo

as novidades, os beijos, as saudades... e filosofavam demais, repensavam  vida, amor... Alberto a estava

esquecendo ou trocando-a por uma

mulher mais nova

ovelha de uma região

qualquer desse mundo desconhecido pra ela.




Somente os homens

conseguiam chegar até o Vie Moderne,

somente eles aguentavam uma viagem dessas,

a pele desses guerreiros

era como um couro alaranjado, resistente ao sol chicoteador, porém

sensível às carícias sutis das meninas fogosas que viviam

protegidas por eles no meio do nada.



Berta e Josefa eram as mais velhas, estavam lá quando o céu ainda era azul,

isso quando ainda havia estradas sinuosas, com mato e tudo,

que desembocavam no Vie Moderne, nome esse improvisado,

já que estava numa capa de revista colorida trazidas do desconhecido,

moderna, bonita, com fotos de mulheres bonitas de outras regiões não tão quentes.

A capa emoldurada tornou-se a placa de entrada do chalé. Mas da onde vieram essas

mulheres e meninas? Não vieram, já estavam ali, resistiram como puderam, e agora

ilhadas de sol por todos os lados, iam sobrevivendo enterrando as colegas mais fracas e enlouquecendo bem devagarzinho porque o tempo ali é lento. O último relógio que badalou por ali, nem se sabe, relógio pra quê? Não se perdia tempo pensando no tempo...



O mascate botava medo nas meninas, dizia que o mundo além dali tinha se acabado muitas vezes e recomeçado, mas nunca mais tinha sido o mesmo,

que a água nessa abundância toda que elas sonhavam não existia mais não, só mesmo o dilúvio do tal do Deus da inicial maiúscula.

Mas muitos acreditavam que se por um acaso houve a época do dilúvio, essa era a época da secávia só que era tão pior

que dessa vez o Deus nem avisou, simplesmente enxugou a terra e empurrou o sol pra mais perto.



A profissão mais antiga do mundo era também a mais resistente do mundo, porém o Vie Moderne era tesouro, era oásis protegido, os homens mais fortes que podiam

viajar até lá, não eram besta de contar aos outros.



Num canto do quarto, uma máquina velha que parecia um livro de metal, na capa vinha escrito "kind", o mascate disse que era antigo pra burro, que roubara de um senhor, disse que servira no passado pra muitas coisas,

que fora um livro moderno que podiam buscar histórias de qualquer lugar do planeta, um dos primeiros desse modelo.



Apoiado numa pilha de jornal amarelo chamado Rastilho e de revistas de mulheres nuas... pela janela, vê-se os quadrados desenhados na terra em formato de cova onde por baixo secavam os animais mortos (alguns dos animais eram meninas), que tentaram enfrentar o sol e voltaram na carroça de Panúsio, escaldados; lápides dos fetos rejeitados, todos que teimaram na fecúndia. Não tem hospital, mal há remédio pra coisa alguma, Panúsio avisa: se adoecer sinto muito. E existe cliente que insiste em ter programa com as que já se foram, problema resolver isso, mas tem dia que é assim, simplesmente cismam, gente louca. O sol vai enlouquecendo a todos e a viagem até o Vie Moderne é longa, é o caminho para lá da caixa de Pandora e tem muitos que não voltam, mas sempre surgem homens novos, vindo do nada para o nada e vão-se embora para o nada de novo.



Só as mulheres agüentam, existem coisas que simplesmente não mudam... as mulheres agüentam, e os homens fogem...


Num outro canto, perfumes evaporam, ao que deveria ser o meio-dia, alguns até borbulham dentro de seus frascos e a casa toda se

inunda de cheiros misturados, as mais novas sentiam enjôo e dor de cabeça. Perfume era um negócio que o Mascate trazia muito, como água pra beber,

disse que ficavam mais perto, o grande país dos perfumes e dos laboratórios abandonados com seus grandes tonéis de essências...Paraguai ou França? Panúsio misturava, inventava aromas,

dizia-se alquimista e que ainda ia transformar metais em ouro... recomeçar o mundo.



Vocês não precisam acreditar no que eu escrevo, afinal, até esse momento “leitor” você não sabe quem eu sou não é mesmo?



 Rosa se deu conta (como se de repente o cérebro tivesse estalado, há muito nem precisavam mais pensar, gastar energia, então vai se desacostumando... quando a mente, sozinha, se organiza e conclui algo é uma sensação agradável de autoconfiança invadindo o corpo feminino daquelas princesas bronzeadas e burrinhas, burrinhas...) de que se Panúsio morresse de repente como seria? Morreriam de fome, de tédio...



E então enterrava-se mais uma... Úrsula. Já ardiam as costas das outras que cavavam...dava até pra sentir um pouco de raiva da morta pelo incômodo. Mas ai lembrava-se que não se enterrava pela morta, mas pelas vivas, para poupar a todas de queimado e podre...



Mais uma semente plantada, dessas que não nascem nunca mais...

É a semente do contrário. Planta-se e não se espera pela colheita.



Novas flores no jardim seco, quem sabe? Ficaria bonito se pudessem plantar alguma coisa.



 Se alguma coisa viva resistisse naquele lugar.



Era Panúsio quem vinha ali? Era!


Com mais três homens! Hora de trabalhar.


Chagas, problemas renais, infecções de urina, desidratação... Panúsio dizia que a maioria da população morrera disso, o azeite mineral pra tomar banho ia se acabando, e a sujeira traz doença... Panúsio estava desconsolado, doente e meio amalucado da cabeça, parecia louco.



 Ah horas em que ainda se lembra de coisas da última vida...



O amor....



O amor depois de alguns anos é como a reforma de uma escultura antiga de gesso ou argila, biscuit ou porcelana... Existem espaços tomados de pó, sujeira, espaços mais escurecidos, não há como limpar totalmente ou como impedir que se acumule o pó, não se percebe até que um dia vem à lembrança a imagem daquela estátua viva e colorida e ai sim se percebe a diferença. E então surge um certo orgulho pela boa conservação, apesar dos anos, das intempéries do tempo, fica-se feliz por tê-la guardado, preservado, mantida consigo, e de repente a peça está impregnada de história e de dignidade, torna-se mais sábia que nós porque a tudo observa... e te conhece.



A escultura no alto da escrivaninha me conhecia, sabia de tudo o que eu sentia, sabia da minha história e em sua memória de argila porosa estavam sedimentadas no seu centro mais profundo, minha vivência humana e sua existência de objeto.



Então pegamos um pincel e limpamos os cantinhos com apreço e cuidado, com certa dignidade e humildade, felizes, com calma; observamos sem surpresa as linhas da pele superficial que se craquelaram sobre o desenho, a coloração gasta, os detalhes novamente reconhecidos. Depois de retoques e de uma boa limpeza a peça toma vida, a energia flui como se uma escultura por um momento pudesse possuir uma aura, ou libertar aquela que sempre teve e que se depurou com os anos de imobilidade contemplativa.

Chamamos alguém e dizemos, “olha só, como nova!” e o outro, por não saber, por não estar dentro de nós, não percebe. Olha e pensa: “ ainda está velho”  ou “ por que perder tempo limpando isto, compre um novo...” Mas em nós, o suor discreto do esforço resulta em paz, em calma, em alegria de olhar e ver que ainda podemos recuperar coisas... O ser humano é capaz de recuperar coisas...

  
No mês das noivas... as mulheres casadas com todos os homens do mundo... cozinhavam. Sim, porque fogo era algo fácil de se conseguir, um pedacinho de vidro alinhado direitinho e o sol acendia em qualquer superfície... se Deus quisesse matava a todas ali como se mata formigas...

 Formigas, das grandes, tudo ali virava comida, o que passasse e não pensasse demais não pensava era mais. E pensar esquenta, tudo que se move provoca calor, então o melhor era ficar quieto, era deixar que a mente adormecesse em sonhos mornos feitos de vapores, deixar que a baixa pressão no corpo inebriasse a vista e qualquer tenção de pensar...

 Mas que burras, Deus já as estava matando... mulheres formigas, bundas carnudas e desproporcionais, mulheres que sempre carregaram mais do que o peso da própria alma... proeza das mulheres formigas...  himenópteras... Hymen pteras... Hímens com asas?? E suas pobres bichinhas voariam para onde? Talvez para um campo cheio de phallós... Mulheres Insectas...interceptas...



Mulheres que uniam o prazer das vaginas aos homens; como um dos fios nos quadros de Magdalena Carmen Frida Kahlo... (sim, porque neste conto quero a Magdalena, não a Frida... quero a mulher antes de se tornar pintora, quero a mulher que pintava e sempre pintou, aquela que desejou morrer cremada...)



Mulheres em Maio...



Aquelas mulheres moribundas, insepultas, putas, incultas...



Mas se tinha uma coisa bonita mesmo pra se ver naquele inferno era a noite... porque onde não se


tem nuvens nem esperança, se tem estrelas e alguma poesia...



É ai que eu entro?


Não. Porque nessa noite é que entraram em mim...  Mas eu vou explicar essa parte direito, afinal vocês gostam de ler sobre sexo não gostam? Então lá vai...


Estava eu olhando a noite, deitada naquela terra que era como o mar que era morno de dia... e ali flutuando na terra e nas idéias, naquela condição imperecedoura, naquele imorredouro permanente, quando ouvi as meninas gritando que os homens chegaram... e eu, a Frida da família, não movi um pêlo, um cílio, nem um silho do vaso que eu formava sem querer com os braços acima da cabeça...


Ai esperei para ouvir e ouvi que eram dois... depois percebi que tinha mais alguém andando naquele mesmo mar em que eu flutuava... acima de mim uma cabeça invertida... e quase me afogo!


Naquele mundo do inferno era possível haver beleza? É claro que os padrões mudam, onde só tem o marrom e um azul feio e fraco, não se pode desperdiçar o verde... e aquela cabeça depois de desinvertida me surpreendeu com dois olhos d’árvore. Chrysoberyllus.  



 Mas eu juro juro juro por esse Deus maldoso que o nome do homem dos olhos verdes foi só uma coincidência, não fui eu quem escolheu... O nome dele era Cristiano... Chrystiano... o meu Jesus de olhos d’árvore.


Se o Chrystiano queria sexo comigo? Não, não queria com ninguém. Adelita veio roçar os seios murchos nos galhos do menino árvore Jesus, mas ele disse que veio só pra acompanhar...


Não?! Era a primeira vez que eu queria fazer sexo depois de tanto tempo e ele dizia “Não”. Aquele servo da puta... viado e filho da puta.


Lindo e filho da puta.

 A mulher nem se lembra da própria aparência até que uma nova mulher ou um homem bonito se aproxima e a fêmea de repente torna-se toda preocupação. Sentada em frente a uma espécie de penteadeira com um espelho desproporcionalmente maior que o móvel, encarava-me. Os perfumes velhos da minha avó me faziam pensar na minha ilusão de criança, e com minha forma de associação ainda falha e imbecil, que aqueles vidrinhos eram bebidas. Aqueles perfumes velhos e de qualidade barata tinham cheiro de álcool e loção pós barba. Mas eu adorava abrir aqueles vidros todos e cheirá-los repetidas vezes. Depois saía escondida fedendo àquela mistura ubíqua, aberrações da alquimia da imitação.

 Eau de Toilette, Gyvenchy III, Paris.


Dioríssimo – Christian Dior



Orquídea do Amazonas – Fiorucci



E agora sou em quem possui perfumes velhos, fedorentos, numa nova imitação de uma vida de luxúria.



As mulheres normais envelhecem como mães sábias... Prostitutas simplesmente apodrecem.



O cabelo perde o brilho e o corte, a pele e a maquiagem fogem uma da outra como uma pintura estranha e moderna de horror.





Eu cheguei a estudar e a ter um namorado... Sempre fui bonita, sempre tive fogo no rabo e sempre falei muito bem, escrever não muito, mas sempre falei muito bem... Por que eu me tornei prostituta? Você não vai encontrar essa resposta nesse livro.



Meu orgulho sempre foi meu maior veneno, um dia ia me apodrecer por dentro. Com toda essa base na minha cara, e de um tom mais escuro que a cor da minha pele, as linhas que se multiplicam com as estações ficam escondidas somente enquanto eu não sorrio. Se solto ou abro a boca, mesmo que devagar, essas linhas surgem como fendas de um terreno de barro seco, maquiagem podre com cheiro de argila. Essas linhas todas, esses trópicos, se movem num mecanismo, e conforme se movimentam formam novos desenhos, expressões estranhas ao que sinto realmente e de repente uma dessas linhas oprime uma cicatriz, uma mancha, uma verruga... Os fios das sobrancelhas se engrossaram e cresceram desalinhadas.


E qual a arma que eu tenho? É injusto ficar aqui assim como se tivesse secado, que caralho! O pior é que me vejo, me entendo, me avalio pelo olhar que vem contra o meu... Quem me olha petrifica uma expressão que é a pior mágoa que eu podia carregar. Vivi da beleza, das cores saudáveis, da minha pele quente e elástica e agora os olhares mudaram, apenas olham e muito pouco enxergam. O olhar que tenta se aprofundar se detém nas dificuldades da pele, na dura escalada das fissuras, pêlos, verrugas, manchas e então o olhar do outro desiste e superficialmente faz seu julgamento fugindo para qualquer paisagem mais agradável.


É uma grande humilhação depender assim de algo que eu nem posso controlar: beleza.


Nunca esperei do amor fidelidade, eu sempre soube como os homens eram e do que precisavam. Pequenos fortões que só fazem pose e tipo e gostam de achar que mandam... Os casados, os inexperientes, os porcos, os toscos, os machistas, os doentes, os perigosos e os românticos. Tem sim, tem homem que vem procurar prostituta como se tivesse escolhendo alguém pra casar e exige cumplicidade ainda por cima, esses loucos iludidos, iludíveis...

  - Aiiiii, droga, uma aranha!!! – gritou Rosa


Calmamente cravei um olhar fixo na bicha enquanto esticava o braço até a estante, puxei o primeiro livro grosso que encontrei...


aquei na aranha como uma rocha...


A aranha morreu No caminho de Swann...

 Isso aqui vai ser um conto? Ou um romance? Hum, não sei se tenho paciência para escrever um romance... Não sei se tenho paciência para viver um desses.


Jesus tinha aparecido, pregado e ido embora. Me olhou algumas vezes tentando me identificar... Foi um dos pouquíssimos olhares que ao invés de dar uma bofetada havia me acariciado sem receio. O Jesus dessa história não havia sido crucificado aos 33 anos, mas sim aos 41... crucificou-se naquela terra e na turma de Panúsio como “catador de coisas”.


Sofri com a demora. Sofri sim, com a ausência de Chrystiano. Sonhei por algumas noites que ele me achava, me catava, e me levava com ele no carrinho em suas viagens... como um pastor de objetos recolhidos...


Essa é a sua história? Perguntarão.



É difícil, para uma mulher de cabelos longos, não deixar nenhum fio de cabelo cair por onde ela passar. Sempre ficam vestígios.

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