Por Luciano de Melo - www.anedotabulgara.blogspot.com
PERSONAGENS
LÍVIA – Vítima do o sequestro e namorada de Binho. Entre 18 e 20 anos.
BINHO – Mentor do sequestro. Entre 20 e 22 anos.
TELECO – Líder dos sequestradores. Cerca de 30 anos.
DUDA – Sequestrador. Entre 26 e 28 anos.
CENÁRIO
O cativeiro é um cômodo mal iluminado e sujo. Os únicos móveis existentes são uma cama de solteiro e uma cadeira. Na junção entre as paredes em que ficam encostadas a cama e a porta, um chuveiro, um vaso sanitário e uma pia, encobertos por um lençol pendurado, improvisam um banheiro.
Cena 1 – Vê-se o cativeiro. Surgem gritos de ordem, como “por aqui, rápido, sobe, entra logo, vai... vai...”. Os personagens entram em cena. Dois homens conduzem uma moça pelos braços com truculência. Partem deles os gritos de ordem. Ela está de capuz e camisola e tem as mãos amarradas. Um deles descobre o rosto dela, e vê-se que tem uma fita grudada na boca. Fazem-na sentar na cadeira. Ela está inquieta. Olha para todo o redor do cômodo e para os personagens. Os dois vêm ao centro do palco. Estão ofegantes. Conversam em sussurro.
DUDA – Porra, cadê ele?
TELECO – Não sei, cara. Não sei. Já era prá ter chegado.
DUDA – A gente não podia deixar ele lá, sozinho... Isso foi loucura.
TELECO – Agora já está feito. Não dá prá voltar atrás. Vamos esperar.
DUDA – Mas e se ele não aparecer?
TELECO – (Impaciente) Não sei, porra, não sei...
DUDA – Será que deu tudo certo, hein? A gente cumpriu tudo direitinho, né?
TELECO – É... Só falta ele. A nossa parte está feita.
DUDA – Mas... Mas e as suspeitas? Será que não ficou nenhuma?
TELECO – Claro que não! Foi tudo na calada, chapa. (Pausa) Você viu o
tamanho que ficou o porta-malas? Só grana, cara. Anel... Relógio...
Pulseira... Tudo ouro fino, rapaz.
Pausa.
DUDA – Mas e a mina aí, meu? Como é que vai ficar? (Os dois olham para
ela, que se assusta com o olhar deles)
TELECO – Aí é outra parada. Tem que fazer tudo como a gente combinou prá
não dar “xabu”.
DUDA – É... Essa vai ser foda! Mas aí, não é problema nosso. É dele.
(Voltam-se para o centro do palco)
TELECO – Cara, põe uma coisa na tua cabeça: o que a gente fez não foi só
roubo não, cara. É sequestro, porra.
DUDA – Mas aí é problema dele. A gente fez a nossa e trouxe prá cá o que ele
queria. Agora... (Interrompe-se a fala com batidas ritmadas na porta,
como um código)
TELECO – É ele!
Cena 2 – Os dois saem do cativeiro e a luz se apaga. Um foco de luz surge do lado de fora, ao lado da porta. Binho está com a roupa suja de sangue. Ele tira da cintura uma arma e a entrega para Teleco.
DUDA – O quê aconteceu, velho? Que demora foi essa?
BINHO – (Com afobação) Ela está bem? Como está ela? Eu preciso ver...
TELECO – (Interrompe Binho, segurando-o) Não, não, não, nada disso! Agora
não! Sossega. Deixa a mina sozinha por enquanto. Já chega de
susto por hoje. Não vai ajudar em nada saber que o namorado está
por trás de tudo isso. Fica tranquilo que ela está bem. Tá
assustada, mas é normal, certo? (Ele não responde. Teleco enfatiza
a pergunta) Tá certo, cara?!
BINHO – (mais calmo) Certo... Certo. Está tudo bem. (Pausa) Está feito o
serviço.
DUDA – Matou os velhos?
BINHO – Não tô falando que o serviço está feito? (Tira do bolso um par de
brincos e um anel)
DUDA – O quê que é isso?
BINHO – São dos pais da Lívia. Um dia eu entrego prá ela.
Teleco e Duda põem a mão na cabeça, em sinal de desacordo.
DUDA – Puta que pariu, prá quê isso? Prá quê arrancar isso deles? Qual é
que é, hein? Vai pagar uma de herói agora prá mina?
TELECO – (Para Duda) Para, Duda, para com isso. Deixa, deixa ele. Tem certeza que ninguém te viu?
BINHO – Não, ninguém.
DUDA – Cara, você fez tudo errado. Deu a maior brecha. Prá que pegar
essas porras?
BINHO – Não me enche, merda!
DUDA – É prá fazer só que a gente combina, entendeu? Era prá você matar
os velhos e cair fora. Ninguém aqui combinou de trazer “lembrancinhas”. (Irônico) Você está estragando tudo!
BINHO – Eu já falei que ninguém me viu, porra! (Guarda as joias no bolso)
TELECO – (Para eles) Chega! Eu vou falar uma coisa para os dois: a gente
entrou nessa junto e vai sair dessa junto. Se um fez cagada, todo mundo
fez cagada. Aqui, o que um faz, todo mundo responde, certo?
(Para Duda) Se ele está falando que o lado dele tá limpo, então tá limpo.
Não fica enchendo a cabeça do cara com um monte de baboseiras,
beleza? Vamos seguir o plano. (Duda aceita a condição de Teleco)
Agora, só uma coisa (para Binho): não pode vacilar. Tem que fazer só o
que a gente acertou, tá? E essa camisa aí, cheia de sangue? Matou
mesmo os dois?
BINHO – Matei... matei os dois. Cheguei até pertinho deles, prá ouvir se
estavam respirando ou não. Mas o velho tava vivo ainda, cara, e me
agarrou pela camisa... Aí tive que descarregar a arma em cima dele.
TELECO (Negando com a cabeça) – O serviço tem que ser limpo, porra. Não
tem que ver se está morto ou não, tem que eliminar! Eu cansei de falar:
acerta na cabeça! (Aponta com o dedo para a própria cabeça) Na cabeça!
É só estourar a cabeça que não tem erro, porra!
DUDA – Prá bandido é fácil falar.
TELECO (Agarra Duda pela camisa) – NÓS somos bandidos, porra. NÓS! Se um cair aqui, todo mundo cai. Agora não tem mais volta. (Para os dois) Cada um que a gente mata carrega pro resto da vida. Todo esse sangue aí (aponta pra a camisa de Binho) está em todos nós agora. Foi uma escolha nossa. Se ele quis matar os pais dela, todo mundo matou.
BINHO (Para Teleco) – Fiz isso pela Lívia e vou fazer quantas vezes for.
Ninguém vai atrapalhar o que eu sinto por ela. Ninguém!
TELECO (Para os dois) – Bem, o lance é o seguinte: até aqui, tá tudo correndo
bem. (Aponta para Binho) Ele matou os pais dela, a gente roubou a casa
e trouxe ela prá cá. Cada um fez o seu lado. (Fala para Binho) Agora,
tem uma semana pra dar um fim nesse sequestro, tá? Não vai demorar
muito e a polícia vai ta batendo aí, procurando a gente.
DUDA (Para Binho) – Você precisa agilizar e contar tudo prá namoradinha o
mais rápido possível, cara.
TELECO – Por enquanto, é o que a gente combinou: você inventou esse
sequestro para tirar ela da casa, certo?
BINHO – Certo.
DUDA – Mas precisava de ajuda prá tirar ela da casa. Aí entra a gente. (Refere-
se com o dedo para ele e Teleco).
TELECO – Nós vamos enrolando, dizendo que a negociação com o pai não
está evoluindo... Que o velho está com muitas exigências... Sei lá! Tudo
isso vai ser o tempo de você ir chegando, conversando, e falar que
deu um fim nos velhos.
BINHO – Não, não, fiquem sossegados. Ela vai entender que tudo isso que eu
fiz foi prá tirar ela daquela vida. Lá, a gente nunca ia dar certo.
Daqui a gente some no mundo. Só nós dois.
TELECO – É... Não vai ser fácil, mas foi o que você escolheu, não foi?
(Pausa) Uma semana, cara. Uma semana.
A luz se apaga.
Cena 3 – A luz cresce aos poucos, iluminando o cativeiro. Lívia está agachada no canto da parede, chorosa. Ao seu lado, um prato de comida e talheres que parecem não terem sido tocados. Em cima da cama existe uma bolsa grande, com pertences de higiene pessoal e algumas peças de roupas femininas. No chão, ao pé da cama, uma caneca e um pote com água. Demora-se um pouco nesta imagem. Barulho de chave na porta. Duda e Teleco entram. O primeiro tranca a porta e o segundo se aproxima de Lívia.
DUDA – Ih, nem mexeu no prato de novo.
TELECO – Já é o segundo dia que não trisca na comida, hein, menina?
(Agacha-se e põe uma colher de comida na boca) Hum, não sabe o que
está perdendo. O feijão está uma delícia! Tá a fim, Duda? (Levanta-se)
DUDA – Deixa isso aí, Teleco. Vai que ela resolve comer depois. Deve estar
com uma fome dos diabos.
TELECO – Não, não, não. (Balançando negativamente a cabeça e colocando o
prato novamente no chão.) Você viu que este lugar está empestado de
barata? É por causa da porcaria da comida que fica horas e horas aí no
chão. Tem até rato rondando pelos cantos aí. Se a dondoca não quer
comer, dane-se. (Para Lívia) Agora vai ser assim, viu, mocinha: não quer
comer, não tem comida. Se quiser, vai ter que pedir. Ouviu, Duda? (Para
ele) Não traz mais comida para a madame até ela pedir.
DUDA – Mas ela vai comer o quê, Teleco?
TELECO – (Irônico para Lívia) Rato... Barata... Pasta de dente... O que não falta é opção! (Sério para Duda) Tô de saco cheio dessa frescura toda aí, Duda.
DUDA – Mas está pegando pesado, Teleco. Não precisa. Não vê que a menina
está aí assustada com tudo isso?
TELECO – Pegando pesado o caralho, Duda. Não vê que tudo isso é manha?
Está fazendo cena desde de que chegou aqui. (Volta-se para Lívia,
apontando para o chão) Só que aqui, meu anjo, neste mundo, o que vale
é a lei do cão. Lá no seu, chorou tem viagem de luxo... Vai prá Disney...
Nessas bandas de cá, ter o que comer já é um luxo, sabia? (Pausa) Não,
com certeza você não sabe. Bem-vinda ao mundo, garota. (Para Duda)
Não aguento mais tudo isso, cara. Não vejo a hora de acabar essa
porra, viu?!
DUDA – Sossega, Teleco. Logo, logo tudo isso acaba.
LÍVIA – (Ainda agachada) O Binho não vem?
DUDA – (Para Lívia) Sei lá, porra, acho que vem.
LÍVIA – (Levantando-se) Mas onde que ele está?
DUDA – Não sei, diacho, mas já deve estar chegando. Olha, não complica
mais não, tá bom? (Segura Lívia pelo braço e puxa a cadeira para ela
sentar) Por que não come um pouco?
LÍVIA – (Desgarrando do braço de Duda e gritando) Eu não quero sentar, não
quero comer, não quero porra nenhuma! Não aguento mais! Estou há
uma semana presa neste inferno e você vem me pedir prá não complicar
mais? E dá prá complicar mais ainda? (Anda em círculos pelo cômodo)
Binho! Binho! Binho! (Esmurra a porta)
Os dois seguem os passos de Lívia. Ela está transtornada. Duda a segura pelos braços e a joga na cama. Ela fica estática, assustada com os dois. Duda se senta na cadeira.
DUDA – Sossega, Lívia. Porra, você só complica mesmo as coisas! Ninguém
aqui tá a fim de criar problema. É só você ajudar. Agora, fica dando ataque de louca pelo quarto... Aí pira qualquer um.
LÍVIA – (Senta na cama, respirando fundo e arrumando a roupa e os cabelos)
Tá bom... Tá bom... Tá bom. E o meu pai? Falaram com ele hoje?
TELECO – Seu pai não está querendo ajudar.
LÍVIA – (Espantada) Como assim “não está querendo ajudar”?
TELECO – Ah, fica chorando toda hora pela grana. Eu falo “Velho, estamos
falando da tua filha”, mas o coroa não está nem aí. (Bate as mãos como sinal de pouco caso)
LÍVIA – (De pé) Mas eu já falei que posso falar com ele. Eu juro que consigo. Eu sou a filha. Me dá uma chance!
TELECO – Não dá, Lívia. Não dá... Não dá.
LÍVIA – O que é que está acontecendo, hein? Ninguém aqui me fala nada!
Invadem a minha casa, me trazem prá este inferno e me tratam como
um animal enjaulado à base dessa porra de ração! (Aponta com os olhos
para o prato de comida) Não aguento mais viver nessa merda! (Caminha
para o banheiro improvisado e abre a cortina) Eu vou ficar doente,
sabiam? Eu vou ficar doente! Não tem água pro vaso. Fica tudo aí,
parado, juntando bicho. Não tomo banho há uma semana. Uma semana!
(Aponta para as paredes) Isso aqui não tem janela. Há uma semana que
não vejo sol. (Fica de frente para os dois, com o dedo em riste) Nem a
cadeia em que os dois vão apodrecer quando sair daqui é pior que essa
merda. (Pausa. Respiração ofegante) E vem me falar de luxo, Teleco?
Quem é você prá me falar disso? Não são vocês que querem luxo,
roubando minha família, prá viver no bem bom?
DUDA – (Para Teleco) Eu vou descer a mão nessa menina, cara!
LÍVIA – (Encarando Duda e dando tapas no próprio rosto) Isso, Duda, faz
isso. Me espanca, vai. Aliás, por que não faz melhor? Me mata logo,
porra. Acaba logo com isso. Não é o que todo mundo quer aqui, acabar
com tudo?
TELECO – (Segura Duda) Duda, fica na boa, cara. Não vamos perder a cabeça
agora. O Binho falou que resolve tudo hoje. De amanhã não passa.
LÍVIA – Resolver o quê? Meu pai não quer ajudar mesmo.
DUDA – Por quê você não cala essa boca, hein? (Solta-se de Teleco) Eu
não vou sujar minha mão com essa... Com essa vadia!
LÍVIA – Vadia é a tua mãe, filho da puta! Sujar a mão? Sujos vocês já são
até o pescoço! Imundos! Podres! Bandidos! (cospe no chão)
Silêncio na cena. Lívia se senta na cama e põe as mãos no rosto. Duda está imóvel, no centro do palco. Teleco recolhe o prato.
TELECO – (Para Lívia) Um dia você vai saber toda a verdade, Lívia. E vai se
arrepender de todo esse monte de besteira que falou até agora.
LÍVIA – Vai à merda, Teleco. Quero ficar sozinha.
TELECO – Já estamos na merda, Lívia. Todos nós. E a culpa é sua!
LÍVIA – Ah, essa é muito boa agora. Somem da minha frente os dois!
TELECO – A culpa é sua, Lívia.
LÍVIA – Sumam daqui, porra! Vão embora! Me deixem em paz!
Enquanto Lívia grita palavras para que se retirem, começa a atirar as peças de roupa da bolsa em Teleco e Duda. Este destranca a porta. Os dois saem de cena a trancam no quarto. Lívia continua com o gritos e a atirar roupas pelo quarto. Esmurra a porta e as paredes, chorando.
LÍVIA – Pai! Pai! Faz alguma coisa, pai, pelo amor de Deus. Me tira daqui! Eu
não agüento mais! Mãe! Mãe! Me tirem daqui! Eu odeio vocês! Odeio! Binho! Binho! Eu quero ir embora!
Estas palavras são repetidas a esmo, enquanto Lívia retorna para o canto do início da cena. Agacha-se na mesma posição e abaixa a cabeça sobre os braços cruzados. As luzes diminuem até restar um foco sobre Lívia. O foco se apaga.
Cena 4 – A luz ressurge na porta. Binho entra com barras de chocolate nas mãos. O cativeiro se ilumina. Percorre com os olhos toda a bagunça no cômodo e é surpreendido com um abraço por Lívia. Nas primeiras falas os dois estarão abraçados.
LÍVIA – (chorosa) Binho, por onde você esteve este tempo todo? Não me deixa
mais sozinha aqui, pelo amor de Deus.
BINHO – Lívia... Lívia...calma. Olha, o que eu trouxe pra você. Os chocolates,
viu? (segura Lívia pelos braços) Tá tudo bem?
LÍVIA – É claro que não está nada bem, não é? Binho, senta um pouco aí.
(Binho se senta na cama e Lívia na cadeira, de frente para ele) Você não
acha que foi longe demais com essa história, Binho? Olha, prá quê as
coisas chegarem a este ponto? (aponta para o cômodo) Nós tínhamos
futuro, eu e você. Eu te falei que era difícil pro pai aceitar o namoro, não
falei? Mas eu ia dobrar o velho. E se não conseguisse, paciência. Ia ser
do nosso jeito. (Enfatiza “nosso”) Meu e seu, e não só seu. (Enfatiza “só
seu”)
BINHO – (olhando para os chocolates) Eu trouxe os chocolates que você tanto
gosta, olha... Esse aqui é branco... Tem um de trufa... Ah, tem de
brigadeiro...
LÍVIA – (interrompendo Binho) Chega, Binho! Chega! Você nunca dá a mínima
para o que eu falo, não é? E ainda acha que sempre pode me comprar
com estes chocolates! Some, me deixa sozinha com dois loucos aqui
presa e me vem com essas porcarias! (caminha em direção à cadeira e
se senta) E ainda pergunta se está tudo bem.
BINHO – (irônico) Olha, desculpa, tá, Lívia? Pô, nunca o que eu faço está bom
prá você! (Joga os chocolates na cama) Estou tentando manter as coisas
da melhor forma possível, mas você não coopera...
LÍVIA – Não precisa me dizer nada isso que o Duda já me falou hoje, tá?
BINHO – Eles estiveram aqui hoje?.
LÍVIA – Eles sempre estão aqui, Binho, prá me infernizar. (Levanta-se) Isso está
ficando insuportável, Binho! Cada vez que os dois aparecem por aqui, é
só merda que acontece. Já foram chegando olhando pro prato. Aí, como
eu nem trisquei naquela droga, já começam “dondoca daqui, fresquinha
dali”, me dando lição de moral. Agora vou tomar lição de moral de
bandido, Binho?
BINHO – Lívia, eles não são bandidos. São meus amigos.
LÍVIA – (com riso irônico) Putz, era só o que me faltava. (Pausa) Binho, você
agora é amigo bandido, não é? Mas é claro! Você também é um!
BINHO – (segura Lívia) Lívia, você sabe muito bem o porquê fiz tudo isso. Fiz
por você!
LÍVIA – Ah, é? Vai saber se não foi prá secar a grana do meu pai?
BINHO – Lívia, não brinca com isso!
LÍVIA – Quem está brincado aqui é você, Binho, e essa corja que você
arrumou! Você já imaginou como deve estar minha família agora? Você
já imaginou como eu estou agora, Binho? (Começa a chorar. Binho a
abraça)
BINHO – Lívia, eu juro para você que logo, logo tudo isso vai terminar.
Prometo. Quanto aos seus pais, não se preocupe com eles. Eles estão
bem.
LÍVIA – (Encarando Binho) Como assim, bem? Pensa na situação, Binho. (No
centro do palco) O namorado invade a casa, sequestra a filha do casal, a
mantém num cativeiro sabe lá Deus onde e como e você vem me falar
que estão bem? Não é muito pra cabeça, não?
BINHO – (Se encaminha para a jarra no chão. Enche a caneca de água e serve
Lívia. A fala ocorre nesta ação) Lívia, eu sei que eu não mereço mais um
pingo da sua confiança, mas acredite: não se preocupe com os seus
pais. Na medida do possível, estão bem. Eles sabem de tudo que está
se passando aqui, pode ter certeza, e sabem do amor que você tem por
eles. (Pausa) Eles também te amam muito, Lívia.
LÍVIA – (enquanto toma a água) Você tem falado com eles, Binho?
BINHO – (Cabisbaixo) O suficiente para ter certeza do que estou falando.
LÍVIA – Binho, eu não acredito que você pôs tudo a perder. Daqui a dois anos
eu terminava a faculdade, e aí a vida era só nós dois. Prá quê atropelar
tudo assim?
BINHO – É, mas aí, doutora Lívia, como que ia ser? Você trabalhando em
clínica e eu numa fábrica de plástico. O que eu tiro em mês com hora-
extra você ganha em três consultas.
LÍVIA – Mas e daí, Binho? Nós estaríamos casados, seríamos uma família. Entre a gente não tem essa de quem ganha mais ou quem ganha menos. É tudo igual. É nosso!
BINHO – Igual nada, Lívia. Um dia ia estourar. Seus amigos teriam pena de
mim, iam tirar o maior sarro. (Apontando com o dedo) Ih, olha lá o marido
da Lívia, o montador de tomada. E os seus pais, hein? Com o maior
orgulho, com o peito cheio, diriam para a família: este é o Binho,
especialista na fabricação de fios de extensão!
LÍVIA – Besteira, Binho. (Nega com a cabeça).
BINHO – (Levanta-se) Besteira uma ova, Lívia. A gente nunca ia dar certo
assim. Até quando eu ia aguentar isso?
LÍVIA – Ah, é? E até quando eu (Enfatiza “eu”) vou aguentar isso, hein?
(Levanta-se e aponta para Binho) Você não passa de um moleque
egoísta, Binho. Vai atropelando tudo porque pela tua cabeça acha está
tudo certo, não é? Se as coisas não são como você pensa, você logo dá
um jeitinho, não é não? (Pausa. Lívia respira fundo, passa a mão sobre a
cabeça) Binho, vê se me escuta pelo menos dessa vez: acaba logo com
esse sequestro, pelo amor de Deus!
BINHO – Garota, será que você não entende? Não percebe que fiz tudo isso
por você? Ou você acha que eu estou contente com tudo isso? Lívia, era
a única chance que eu tinha prá trazer você para perto de mim. Não me
importa mais nada, a não ser você. Eu não posso voltar atrás, agora. É
um caminho sem volta.
LÍVIA – E o que adiantou? Você fez tudo errado, Binho. Nessa história toda que
você armou, você é o sequestrador e eu sou a vítima. Vê se entende.
Você vai ficar anos e anos preso numa cadeia. Depois, quando sair,
como é que vai ser a tua vida, de ex-presidiário. E a minha? Você por
acaso neste tempo pensou um pouquinho na minha vida? Pensou,
Binho?
BINHO – Eu sempre pensei na gente, Lívia, e não em mim ou em você. Fiz e
faria tudo de novo pelo nosso amor. E os nossos planos? E as nossas
juras? E o amor eterno? Será que nem disso você ainda lembra?
LÍVIA – Binho, isso não é o caso.
BINHO – (grita) E qual é o caso então, hein. Será que ainda me ama, Lívia?
LÍVIA – Binho, não começa...
BINHO – (fala enquanto recolhe as roupas jogadas pelo chão e guarda-as na
bolsa. Lívia só observa) Engraçada você, não é Lívia? Tem sempre a
resposta pronta para tudo. Você sempre foi a ponderada, sempre
pensou em todos os detalhes das coisas. (Pausa) Já eu não, né? Eu sou
o desajustado, o afobado, nunca penso nas conseqüências... (irônico)
Tá aí, é uma boa justificativa para as nossas diferenças, certo Lívia?
(Joga as roupas que tem no chão) Só que a única diferença aqui, entre
nós, é só uma: eu sempre te amei mais! Peitei toda a tua família pelo
amor que sinto por você. Sou capaz de tudo por você, de tudo! E o que
recebo em troca? Calma, ponderação, paciência. (Volta a recolher as
roupas) Sabe o que eu acho que te dói mais nessa história, Lívia? É que
você poderia ter evitado tudo isso, se não tivesse medo de assumir o
que sentia por mim.
LÍVIA – Claro que não, Binho.
BINHO – Claro que sim, Lívia. Ia ser muito doído reconhecer que os seus pais
estavam certos e que a gente não servia para ficar junto mesmo. Mais
uma vez o teu velho jogaria na tua cara que você não passa de uma
criança mimada e que sem ele você não é nada!
LÍVIA – (chorando) Para com isso, Binho. Para!
BINHO – (Encara Lívia) Você sabe que sempre foi assim, Lívia. Todo esse poço
de sabedoria que você parece ser, na verdade é ilusório. Você acha que
tem opinião, que sabe de tudo, mas, que saber? Não sabe de nada. É
fácil conceituar o “de fora” como louco, bandido, egoísta, presidiário... O
feijão que é uma droga, o chocolate que é uma porcaria... E o que mais,
hein? Você foi paparicada por todos naquela casa. Todo mundo te
protegia. (Pausa) Até um intruso aparecer. Ou você acha que um dia sua
família ia me aceitar, hein, Lívia? Nunca! Eu sou diferente de vocês. Não
tenho diploma, não sou rico, não sou paparicado, não é? Ou você ia
sempre cair naquele discursinho de “Ele não serve prá você, filha, é
pobre, sem estudo...”? Porra, e não é seu pai que sempre se orgulhou que veio debaixo, que não tinha nada, era um zé ninguém como eu e que com muito esforço venceu na vida? O medo deles, Lívia, era que você se apaixonasse por mim e todo aquele plano da filha perfeita, protegida, fosse por água abaixo por causa de um mané, que apareceu pra se aproveitar da situação. Mas eu nunca liguei pra merda do seu dinheiro. Nunca! Eu sempre quis só você e cheguei até aqui por você. Como você diz, eu nunca penso nas conseqüências mesmo. (Pausa) É, mas, como sempre eu estou errado e você está certa: eu sou o sequestrador e você é a vítima.
Binho arruma a mala. Lívia senta na cadeira. Binho senta na cama, próximo a ela. Silêncio.
LÍVIA – Você deve achar o meu pai horrível, não é?
BINHO – Não, não, Lívia. Muito pelo contrário. No lugar dele, faria a mesma
coisa. Ia proteger a minha filha o máximo que eu pudesse. (Pausa) O
problema é que eu não sou o seu pai, e, por isso, não penso em você
como pai. (Pausa) Preciso ir embora. (Levanta-se)
LÍVIA – (Abraça Binho) Não, você não tem que ir embora, Binho. Você tem
que ficar comigo, aqui.
BINHO – (Encarando-a) Lívia, não posso. A barra tá ficando cada vez mais
pesada. Todo mundo já sabe do sequestro. Tá em tudo quanto é jornal
por aí. A polícia já sabe de tudo, quem somos nós, de onde viemos...
Você acha que eu e os caras podemos ir para casa assim? Claro que
não. Estamos enfiados num cubículo parecido com esse. Eu também
não aguento mais, Lívia.
LÍVIA – Então era essa a verdade?
BINHO – Que verdade?
LÍVIA – O Teleco falou que um dia eu ia saber toda a verdade. E aí ia me
arrepender de tudo que eu fiz. É essa a verdade, não é, que já está todo
mundo sabendo?
BINHO – (respira fundo) Pode ser, Lívia, pode ser.
LÍVIA – Pô, Binho, não me deixa aqui sozinha. (Abraça-o)
BINHO – Lívia... Lívia... eu preciso ir, é sério. Olha, isso não durar muito não,
tá? Descansa um pouco que mais tarde eu estou de volta.
Binho dá um beijo na testa de Lívia e sai de cena. Ela está no centro do palco. Suspiros de cansaço. Passa as mãos na cabeça e nos cabelos. Começa a dobrar as roupas na bolsa. Guarda os chocolates também na bolsa. Entra no banheiro improvisado. Sai escovando os dentes e anda lentamente pelo palco, de um lado para o outro. Vai para o banheiro e enxágua a boca. Barulho de água. Volta para o palco. Coloca a bolsa no chão e deita na cama. Olha para o teto. Silêncio. A iluminação vai aos poucos caindo até ficar à meia-luz.
Cena 5 – As luzes aumentam aos poucos. A porta do cativeiro é aberta. Duda entra com um embrulho enrolado num pano de mesa e tranca a porta. Lívia está na cama, dormindo, sob um lençol. Duda põe o objeto sobre a cadeira e, de pé, vela o sono de Lívia. Ele puxa levemente o lençol e Lívia desperta.
LÍVIA – (grita) O que é que você quer aqui? (Puxa de volta o lençol sobre o
corpo)
DUDA – Bom dia, princesa. É assim que você me recebe logo de manhã?
LÍVIA – Não me vem com esse sorrisinho idiota na cara, Duda.
DUDA – Hei, hei, calma garota. Eu só trouxe o seu café. (Duda desamarra o
embrulho. Nele, há uma faquinha de serra, uma colher, pão, um pote de
margarina e um copo de iogurte). (Irônico) Olha só o capricho disso tudo
prá você , Lívia. (Mostra o pão para Lívia)
LÍVIA – Guarde seus caprichos para a sua laia, vagabundo. Não quero merda
nenhuma que venha de gente como você!
DUDA – Dobra essa língua, viu, vadia? (Joga o pão em Lívia) É foda servir de
babá esse tempo todo prá uma cadela que nem você!
LÍVIA – (Levanta-se da cama e vai para o centro do palco) Dá o fora, vai! Some!
Se veio aqui só prá estragar o dia, já conseguiu. Agora, some! Rua! Vai!
DUDA – (Caminha em direção à Lívia) Fala baixo, garota. (Pausa) Baixa a bola.
Você acha o quê, hein? (Agarra Lívia pelos braços) Você tá achando que
pode falar assim, comigo, me tocando daqui que nem cachorro. Eu não
sou frouxo que nem teu namorado não. Comigo a conversa é outra!
LÏVIA – Vai se foder! (Cospe na cara de Duda)
Duda ri ironicamente e vai parando aos poucos, até voltar a ficar sério. Dá um tapa na cara de Lívia. Ela cai.
DUDA – Vagabunda! Piranha! Vai cuspir na puta que te pariu!
LÍVIA – (No chão, aos gritos) Vai embora, porra! (Chorando) Vai! Some daqui!
DUDA – Embora prá quê, Lívia? Agora que a coisa tá ficando boa. (Tira o cinto da calça)
LÍVIA – Duda! Duda! Pára com isso. Chega!
DUDA – Ah, tá com medo agora, é? Como é que é, não escutei direito... vccê
me chamou de vagabundo?
LÍVIA (Levantando-se) – Duda, pára...
DUDA – Deita! (Estala o cinto no chão. Lívia obedece) Eu mandei levantar?
LÍVIA – Olha, esquece, tá? Eu tô nervosa... (Pausa) Eu... Eu não quis te
ofender, tá bom? Só queria que você fosse embora agora, por favor.
DUDA (Se encaminha para Lívia. Estica o cinto com as mãos) – Como muda,
né, Lívia? Tá até pedindo “por favor”. (Pausa) De bruços!
LÍVIA – O quê?
DUDA – De bruços, porra! Tá surda!
LÍVIA – Duda... O que é que tá acontecendo...
DUDA – De bruços, porra! (Põe Lívia de bruços)
LÍVIA – Não... Não faz isso... (Segura os punhos de Lívia sobre as costas. Tenta
prende-los com o cinto. Com os pés, afasta as pernas dela.)
DUDA – Agora você pode gritar que eu não ligo.
LÍVIA – Não, não faz isso!
Duda se ajoelha e tenta abrir a calça, enquanto ainda segura com uma das mãos os punhos de Lívia. Ela consegue virar-se e se separar de Duda. Vai até a cadeira e pega a faquinha de serra. Ele se levanta assustado, com as mãos para cima. Lívia o ameaça.
DUDA – Lívia, calma.
LíVIA – Covarde! Filho da puta!
DUDA – Lívia, abaixa essa faca.
LÍVIA – Tu é muito macho mesmo, né? Vai, quer me violentar agora? Vem... Que eu rasgo teu pescoço!
DUDA – Lívia, vamos esquecer, tá bom?
LÍVIA – Esquecer? Esquecer? Se eu não estou com essa faca você tinha me
estuprado agora, covarde! (Pausa) Demente! Eu tenho nojo de você!
Nojo! Nojo!
DUDA – Olha, baixa essa faca, tá? Eu já estou de saída. Não precisa mais disso, tá bom?
LÍVIA – Não, não, pode ficar aqui. Quem vai agora sou eu. Me passa a chave!
DUDA – O quê?
LÍVIA – Me passa a chave da porra do barraco!
DUDA – Não, eu não posso.
LÍVIA – Ah, dar tapa na cara e violentar mulher pode, né? Dá a merda da chave
agora!
DUDA – Lívia... Lívia... Eu sei... Eu sei da minha mancada, mas isso é uma
coisa impossível. (Pausa) Eu não posso deixar você ir embora.
LÍVIA – Foda-se se você pode ou não pode. Eu quero a chave agora ou eu
enterro essa faca na sua garganta! (Avança com a faca)
DUDA – Porra, Lívia, calma com essa faca aí... (Pausa) Tá, tá... Eu... Eu te dar
a chave...
LÍVIA – Anda, anda, vai...
Duda põe as mãos para trás, fingindo procurar a chave nos bolsos. Quando volta com as mãos para frente, surpreende Lívia empunhando uma arma. Lívia se assusta e deixa a faca cair no chão.
DUDA – Tá aqui sua chave, Lívia. Vem pegar. (Rindo) Você achava mesmo
que ia me ameaçar com uma faquinha de cortar pão, é? Vem cá, eu
nasci ontem? Tu é muito idiota mesmo!
LÍVIA – Covarde! Só põe banca com arma mesmo!
DUDA – Isso é problema meu, garota! Cala essa boca!
Cena 6 – Barulho de chave na porta. Lívia e Duda olham para a porta. Teleco entra com vassoura e desinfetante nas mãos. Ele surpreende Duda apontando a arma para Lívia.
TELECO – Que merda é essa, Duda?
DUDA – Não se mete, Teleco.
TELECO (sacando uma arma e apontando para Duda) – Olha como fala comigo,
seu moleque. Abaixa essa porra agora!
Duda abaixa a arma, encarando Teleco. Guarda a arma na cintura. Antes de sair de cena, manda um beijo para Lívia e encara novamente Teleco. Este guarda a arma na cintura.
TELECO – O quê que está acontecendo por aqui, hein?
Lívia não responde. Respira fundo, ajeita o cabelo e a roupa. Serve-se com um pouco da água da caneca.
TELECO – (Entregando a vassoura e o desinfetante para Lívia) Toma. Dá um
jeito nessa nojeira toda aí, vai.
LÍVIA – Ai... (Respira fundo) Vamos lá! O outro agora está preocupado com a
limpeza do recinto. Bem, pelo menos me distraio nessa merda.
Lívia vai até o banheiro. Barulho de água e esfregação. Ela pronuncia expressões de nojo. Teleco anda pelo cativeiro. Senta-se na cadeira. Acende um cigarro. Começa a andar pelo palco. Lívia traz a vassoura e uma lata de lixo e começa a varrer o cômodo.
TELECO – E aí, conversaram muito, você e o Binho?
LÍVIA (Varrendo) – Coisas da gente que não são do seu interesse.
TELECO – Tudo o que acontece aqui diz respeito a todo mundo, Lívia.
LÍVIA (Para Teleco) – Ah é? Que bom. Então acho que as conversas com o
meu pai também dizem respeito a mim, não é?
TELECO – Na hora certa você vai saber de tudo.
LÍVIA (Irônica) – Isso, aí você me manda alguém avisar. (Pausa) Melhor, passa
o jornal por debaixo da porta. Assim, nem precisa se dar ao trabalho de
vir falar comigo. (Lívia volta a varrer o chão)
TELECO – Você é sempre assim arrogante, né?
Silêncio. Lívia pára de varrer e volta para Teleco.
LÍVIA – É... É verdade. Sabe o que eu estava pensando? Todo mundo aqui dá
palpite na minha vida, não é? Que eu sou isso, que eu sou aquilo, que
eu não posso falar desse jeito... (Pausa) Quer dizer, além de me
socarem nesse cubículo há uma semana ainda tenho que ouvir poucas e
boas de vocês, né? Aguentar tudo que é tipo de humilhação.
TELECO – (Apaga o cigarro, joga no lixo e senta-se na cadeira) Sabe que você
até que é engraçada, Lívia? Olha, pode parecer uma loucura, mas, ao
contrário do que você pensa, eu não tenho nada contra você não. Eu já
cansei de falar para o Binho acabar com tudo isso, esquecer esse
sequestro e ver no que dá.
LÍVIA (Senta-se na cama) – Ah, mas era só isso que me faltava agora. Primeiro
aparece um psicopata. Agora, a compaixão do bandido pela vítima. (Lívia ri forçosamente, irônica. Teleco apenas observa). É engraçado mesmo,
Teleco. Muito engraçado. (Ri um pouco mais até ficar séria). Vocês vão conseguir me deixar doente, sabia? Esse tempo todo aqui, trancada neste quarto, deve ter afetado minha cabeça. Eu... Eu não tô conseguindo entender onde você quer chegar.
TELECO – Chegar onde, Lívia?
LÍVIA – Ora, por favor. Esse papinho de “não tenho nada contra você”, “já
pedi pro Binho acabar com tudo”, prá mim não cola. Isso tudo é
conversa de malandro, Teleco. Tá louco pra meter a mão na grana da
minha família e sumir pelo mundo. Vem cá, vocês não estão nem aí para
mim. (Pausa) Quer saber? Se não fosse o Binho, já tinham acabado com
a minha raça aqui mesmo. E quem ia descobrir? Até porque sabe lá em
que fim de mundo nós estamos. (Pausa) Por falar nisso, ninguém
percebe que tem algo de errado nessa casa, não? Ninguém vê vocês
chegando com prato de comida, vassoura, a casa trancada o dia
inteiro...?
TELECO – Isso não é da sua conta, Lívia.
LÍVIA – Tudo o que acontece aqui diz respeito a todo mundo, não é,
Teleco?
TELECO – Escuta aqui. Fora dessas paredes, (Aponta para si) a gente resolve
como as coisas devem ser e isso não é da sua conta. Já te falei que falta
pouco prá acabar essa merda. Eu não minto quando eu falo que não
tenho nada contra você. Também já falei pro Binho acabar com isso
tudo. É só você perguntar quando ele aparecer.
LÍVIA – (Levanta-se e leva o lixo para o banheiro. Nessa ação ocorre a fala)
Prá quê toda essa frescura toda? Por que não para com essa
encenação?
TELECO – (Pausa. Levanta-se em direção à porta) Eu acho que você devia
perguntar prá outra pessoa que é que está encenando aqui.
LÍVIA – Eu não estou entendendo.
TELECO – Se alguém está fazendo cena aqui, não sou eu. Conversa com o
Binho. Ele vai te explicar tudo. Aliás, já passou do tempo pra ele fazer
isso.
LÍVIA – Eu não estou entendendo nada. Como assim, passou do tempo?
TELECO – Você diz que a gente não revela nada prá você, não é? Pois eu vou
te revelar uma coisa: a polícia já sabe onde a gente está. É questão de
tempo pra subir o morro e bater nessa porta. (Aponta para a porta)
LÍVIA – Mas e a minha família? Eles já pagaram alguma coisa? Vocês
conversaram com eles? Como que a polícia já sabe de tudo?
TELECO – Bem, isso é o Binho que vai te responder. Eu não posso te falar
mais nada. Mais dia, menos dia, tudo isso acaba.
LÍVIA – Como assim? E os meus pais? Você conversou com eles?
Teleco sai de cena e tranca a porta. Lívia fica no centro do palco, estática. As luzes se apagam.
Cena 7 – As luzes se acendem. Lívia continua no centro do palco. A porta se abre. Binho entra. Lívia corre para abraçá-lo. A porta fica aberta.
LÍVIA – Meu amor, senti tanto a sua falta... Onde é que você esteve? Eu fiquei
com tanto medo que você não voltasse... O Teleco disse que a polícia já
descobriu o cativeiro e... E que é questão de tempo eles chegarem até
aqui.
BINHO – (Ainda abraçados) Lívia, eu preciso falar com você. (Leva Lívia para a
cadeira). Senta aqui, senta.
LÍVIA – Binho, eu senti tanto medo... Eu pensei que nunca mais fosse te ver.
BINHO – Lívia, eu nem sei como eu vou te falar...
LÍVIA – (Eufórica) – Não importa o quê você vai me falar. Eu não quero ouvir.
Olha, eu já pensei em tudo, meu amor. Sabe, eu vou dizer que a gente
planejou tudo isso... (Pausa) É... Eu e você. Fizemos tudo isso prá ficar
juntos. Juntos. A gente diz que os outros dois iam nos ajudar a fugir,
mas quiseram roubar a casa.
BINHO – Lívia...
LÍVIA – É, Binho. Vai sobrar só prá eles, que já são bandidos. A gente, não. Eu
convenço os meus pais, pode ficar tranqüilo. E daí... Ah, daí a gente vai
fazer a nossa vida...
BINHO (Gritando) – Pára, Lívia... Chega! Não tem nada disso, Lívia, nada
disso! Para um pouco e me ouve. Não existe mais “a nossa vida “!
(Enfatiza “a nossa vida”)
LÍVIA – Como assim, Binho, não tem nossa vida? Eu já pensei em tudo. Eu falo
com os meus pais...
BINHO – Cala a boca, Lívia. Não tem nossa vida, não tem pais... O sequestro
acabou, Lívia... Acabou!
Binho se levanta. Anda inquieto. Lívia só observa.
BINHO – Se você quer saber, nunca teve seqüestro. Isso aqui que você está
vendo não existe! Nunca existiu!
LÍVIA (De pé) – Binho, eu não estou entendendo...
BINHO – Lívia, isso aqui nunca existiu. Nunca teve negociação... Nada, Nada...
Foi tudo invenção minha!
LÍVIA – Então, Binho... Onde é que estão os meus pais?
Binho tira do bolso um par de brincos e um anel e entrega para Lívia. Lívia olha para as joias e depois para Binho.
LÍVIA – (chorosa) O quê significa isso, Binho?
BINHO – Eu matei seus pais, Lívia.
Sinais de sirene surgem.
LÍVIA – (Ajoelha-se) Você o quê, Binho?
BINHO – Eu matei os seus pais, Lívia. Eles nunca iam me aceitar. Você
também nunca me deu certeza que queria viver comigo. Mas eu tive
sempre certeza. Eram eles ou eu. Então eu planejei essa farsa, esse
sequestro, até que tivesse coragem para te contar. Achava que você
aqui, comigo, aos poucos, fosse entendendo o meu amor e aceitasse.
Mas é claro que hoje vejo que seria impossível. Eu sou um assassino,
Lívia. Eu planejei tudo isso. Eu sou o único culpado.
LÍVIA – (Em prantos) Ah, meu Deus!... Meu pai!... Minha mãe!... (Pausa) Deus
nos perdoe! Que amor maldito eu criei!
Os sinais de sirene aumentam.
BINHO – Lívia, você não tem mais nada para fazer aqui, comigo. Pode ir. A
porta está aberta. Acabou.
LÍVIA – Binho!... Binho!... Binho!... Prá que estragar toda a minha vida, pra
quê? (Pausa) Você não tinha direito disso.
Binho tenta erguê-la do chão. Lívia os esmurra. Binho a contém com um abraço.
BINHO – (Chorando) Lívia... Lívia... Vai embora. Me deixa aqui! Vai!
LÍVIA – Ir embora... (Pausa) Ir embora prá onde, Binho? Me diz, ir embora prá
onde?
BINHO – A polícia já tá perto... Vai, Lívia...
Binho saca uma arma.
BINHO – Vai, Lívia... Eu não vou sair vivo daqui! Vai, porra!
Lívia se encaminha lentamente para a porta, com o anel e os brincos nas mãos. Até a metade do caminho, ainda olha para Binho. Na porta, ela para por um instante. Fecha a porta e volta. Abraça Binho.
BINHO – O quê que você está fazendo, porra? Vai embora!
LÍVIA – Não, Binho. Você é tudo o que eu tenho agora!
BINHO – Mas... Mas eu matei tua família!
LÍVIA – Nós matamos! Nós matamos!
As sirenes aumentam. Gritos fora da casa “É aqui! É aqui! É aqui!”. O cativeiro parece cercado. Binho e Lívia estão abraçados. Ele aponta a arma para a porta. A porta é arrombada com um chute. Neste momento, ouvem-se tiros e as luzes se apagam.
FIM