Sobre Luís Alberto Soares
Vó
não falava, vó proverbiava. Certa feita perguntei-lhe: “vó a senhora amou o vô?
Ela respondeu-me: “amamos o que podemos escolher, o que nos é dado protegemos e
respeitamos”. Vó casou ainda menina, aos doze anos, com um “abestado”, dizia
ela. O pai a perdera numa mesa de jogo e o ganhador a casou com um afilhado oligofrênico. Vó não conhece
este termo. “Aos quinze anos meu filho eu ja cuidava das gemeas, de seu pai e
de seu avô, mais criança que todos”.
Quando veio a revolução de 32 deram um arma a vô. “Um homem normal,
perde a natureza com arma na cintura, na mão de um abestado como seu avô só
podia dar no que deu...” O que me intrigava é que vó nunca nos dizia no que
deu: “o passado devemos suportá-lo em nós, quando não nos traz beneficio algum
colocá-lo à luz do dia”... Pai era muito novo e só recorda que um dia a mãe de
vô chegou de carroça, pôs vó, tias Adélia e Adelaide e ele na carroça e
partiram pra cidade. Tias Adélia e Adelaide também pouco contam de suas infâncias.
Recordam apenas que vó sempre carregou consigo o velho baú, que jamais permitiu
ser aberto por qualquer pessoa. Também aquele velho baú guardado a sete chaves
sobre permanente vigilância de vó me intrigava. Outra coisa que nunca soube com
certeza foi o nome de vô. Tia Adélia dizia que ela Aberlado, tia Adelaide Anastácio, pai seguia ora uma ora
outra, às vezes aparecia com um nome diverso. “Este puxou foi pai”, dizia tia Adélia,
completando: “é capaz de não saber o próprio nome”. Vó sempre que falava dele
chamava-o de o Abestado: “O abestado de seu vô dançava como poucos... O
abestado de seu vô tinha uma bela voz... Você corre igualzinho o abestado de
seu vô. “Vó!” , perguntei-lhe certa vez, “como vô se chamava, era Abelardo ou
Anastácio?” “Meu fio, eu nunca chamei
seu vô pelo nome, a não ser diante do padre, pra fazer o juramento” Quando vó
soube que eu planejava viajar a Perdeneiras ela me advertiu “o passado que
buscas está em meu baú, deixo-o se o enterrares comigo depois de vasculhado e
se o guardares contigo sem perguntas”... Certo dia vó me chamou de lado: “Meu
passado é só teu!” ... “Era apenas uma criança”, comentou, “e deram-lhe uma
arma pra brincar”... Passamos duas noites inteiras conversando sobre vó, sobre
vô, sobre tias Adelaide e Adélia, sobre pai. Ao fim da conversa ela me deu a
chave do velho baú: “enterre tudo comigo!”... Um uniforme de praça, com no
bolso um manifesto convocando para a revolução vestia o esqueleto quase intacto,
a não ser pero furo na região temporal. Na mão direita a garruncha e sobre o
peito uma bandeira do Estado. No bolso um lenço com no verso um nome bordado, “Luis
Alberto Soares”, seguido dos dizeres: “Deus proteja meu abestado.”
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