Transformado
os dias em vogais, andava sem força para ser. Era nova ainda, mas trazia no
rosto uma espécie de ódio herdado. Talvez da mãe que não gostava de crianças e
que ao saber de sua gravidez passava os dias sentada na mesa da cozinha, a se
lamentar pelo que podia ter feito a Deus para que lhe mandasse uma cria naquela
altura da vida. E por carregar tanto ódio em si, odiava a menina, que cresceu
ouvindo as mesmas lamentações diárias do ódio da mãe e que assim, herdado a
antipatia natural da família, era.
Enquanto
fingia não se irritar com o barulho da torneira da pia, mexia no crochê da
toalha da mesa pensando no que poderia ser diferente em sua criação para que
fosse diferente agora.
E como
toda boa mal resolvida, culpava a mãe pela sinceridade da infância e acusava a
mesma por se quer lhe ter apresentado um pai.
Pronto.
Caso encerrado. A culpa de ser o que é e de não ser o que gostaria é da mãe.
Pronto. Já é morta mesmo. Melhor culpar a morta, assim não precisaria tomar
nenhum tipo de atitude a não ser se lamentar pelo passado e a família.
Depois de
passar do meio dia as quatorze remoendo mentiras e inventando recordações da
mãe, resolveu “perdoá-la”. E num ato quase de heroína desceu do terceiro andar,
atravessou a rua e foi comprar cigarro.
Estava
sem desde a madrugada e se negava a descer pra comprar. Culpa da mãe, que nunca
a estimou e jamais pensou se quer em instigá-la a desafios bestas, como o de
comprar um maço de cigarros, por exemplo.
Enquanto
contava as moedas e reclamava pela falta de uma moeda de vinte e cinco centavos
para facilitar a grande audácia de um novo maço foi interrompida.
- Vinte e cinco.
Como
assim eu tenho, pensou. Um estranho chega e se quer se apresenta e ainda lhe
oferece uma moeda de vinte e cinco? Se bem que nem oferece. Foi uma doação.
Quase como aquelas caixinhas em fim de ano ou “ajude o lar do c***** a quatro”.
Para ela, aquilo foi quase um estupro moral.
-Não
precisa.
-Não.
-Moça,
são só vinte e cinco centavos, calma.
Respirou.
Mas não uma vez. Quatro. Culpou a mãe novamente por nunca lhe ter apresentado
uma figura masculina que prestasse e que agora lá estava ela, tremendo feito
gata que corre de cão por conta da necessidade de socializar poucas palavras e
o pior: Por conta de vinte e cinco centavos!
-Calma.
- Escuta,
será que eu não posso mais comprar cigarro em Paz?
O moço,
assustado com a aberração que testemunhava não negou, imagina. Recolheu os
vinte e cinco e pediu um café, pequeno.
Passada a
vergonha do constrangimento por ter sido tão ela naqueles míseros segundos na
busca da moeda de ouro disse:
Mantinha
um sorriso de canto de boca carente e tarado. Depois de passar todos os tipos
de pensamentos, e de ter ela achado a questão dele ser loiro um charme:
-Sempre a
mãe.
-Já não
esta mais aqui quem quase apanhou!
Meu Deus.
E ainda tinha senso de humor. Não que ela ligasse pra isso, mas tinha. Ao ouvir
isso pensou que deveria ter mantido o vestidinho em vez de por a calça pela
manhã. Gosta das pernas, se deslumbra quando se banha e até nisso, tem certeza
que puxou a mãe.
---
Antônio Nicodemo
É ator e
iniciou sua pesquisa como dramaturgo em 2004, aos dezessete anos, quando fundou
a Cia Teatro da Neura, onde continua em pesquisa até hoje. Em 2011, iniciou
suas experiências como diretor em A Menina da Cabeça de Bola (Prêmio Ensaiando
Um País Melhor), e seguiu com a direção do novo espetáculo do grupo, O Velório
(ProaC), onde também assina a dramaturgia. Atualmente, também mantém a página
"Pra eu dormir" com contos, crônicas e
pensamentos. Facebook: Antônio Lagreca Nicodemo.