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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

AB-ERECTUS

Há alguns anos, em uma exploração arqueológica, encontrei um conjunto de textos em tabuas de argila que remontam a tempos imemoriais. Consultando, Leopoldo ele informou-me ter relações com um antigo habitante daquelas regiões. Mesmo não dando muito crédito a Leopoldo, que de quando em quando costuma pregar-me peças resolvi apresentar aqui um interessante texto do conjunto de textos que encontrei.

Quando Ab-erectus desceu do monte Shadai EL, o irreconhecível ordenou-lhe passar ao largo do Palácio de Adama. No entanto Ab-erectus sentiu fome e sede e invadiu os jardins do palácio  de Adama. Tomando de suas  águas e comendo de seus frutos Ab-erectus adormeceu.  Adama que passeava pelo jardim surpreendeu Ab-erectus e o devorou. Quando Ab-erectus despertou no ventre de Adama quis sair e não encontrando por onde irrompeu de dentro de Adama, liberando apenas a cabeça e parte do tronco. Adama, aturdido procurava arrancar Ab-erectus, mas toda vez que lhe tocava, Ab-erectus cospia-lhe. Como Ab-erectus demorava a retornar, El, o irreconhecível desceu de Shadai à sua procura e encontrou Adama acabrunhado: “o que te afliges?” perguntou El, o irreconhecível. “Encontrei um bilontra em meu jardim e o devorei, e agora causa-me grande desconforto... Tento arrancá-lo de meu corpo, mas toda vez que o toco ele me cospe”. El, o irreconhecível, fez cair sobre Adama um grande sono, e enquanto este dormia, El, o irreconhecível, sugou de suas entranhas Ab-erectus, que cuspiu ao lado de Adama. Quando Adama acordou, ao seu lado encontrou Matera, nascida de El, o irreconhecível, para aplacar em Adama as centelhas de Ab-erectus, permanecida em Adama. Por isso, todo filho de Matera é centelha de Ab-erectus, quando homem, e El, o irreconhecível, quando mulher...

Vale lembrar que a tradução é de Issac Ben Abbran, nascido por volta de 2000aC. Assim me garantiu Leopoldo.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

POR ONDE - DOVE



E por onde anda tudo aquilo que vivi contigo?                Dove sta andando tutto quello che ho vissuto con te? 

Onde foi que se meteram os instantes                              Dove sono nascosti gli istanti

 mais profundos de minha vida?                                      più profondi della mia vita?

Onde será que estão?                                                        Dove saranno?

Dentro de mim e talvez dentro de você.                           Dentro me e forse dentro te

Se assim permitir.                                                             Se glielo permetti.

Embora os desencontros de nossas vidas,                        Nonostante i mancati incontri delle nostre vite,

os arrependimentos não tomam mais conta                     i pentimenti non fanno più parte

 de nosso caminho.                                                          del nostro cammino

E isso já vai além.                                                           E questo già va oltre.

Continuo te amando e sendo tua                                    Vado avanti amandoti ed essendo tua

assim como você me ama e permanece sendo meu.      come tu mi ami e rimani essendo mio.

Podemos estar no vai e vem, nos separamos,                Possiamo restare in questo andare e venire, ci separiamo

terminamos,                                                                   finiamo,

 voltamos...                                                                    ritorniamo...

Amizade colorida , namoro                                           amicizia variopinta, fidanzamento,

enfim você acaba sendo meu tudo.                               e tu finisci con l'essere il mio tutto.

Te amo...                                                                       Ti amo...

Adorei nossa viajem e sei que muitas                           Mi è piaciuto il nostro viaggio e so che molti

ainda estão por vir ....                                                    ancora stanno per venire.

Três anos de convivência,                                             Tre anni di convivenza,

se assim posso chamar o impacto de nossos corpos     se così posso chiamare l'impatto dei nostri corpi

e nossas almas                                                               e delle nostre anime

que uns e outros chamam de amor .                              che alcuni chiamano Amore.


Texto de Francielly Nascimento  com tradução para o itaiano de Annamaria Rosa 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

SOBRE CEBOLAS

                                                  Mônica Pinheiro Lima Franco  - http://esquinadamonica.blogspot.com
Fatia cebolas.
Certa vez alguém lhe comparou com uma:
- Você é cheia de camadas.
Ergue a cabeça, olhar lacrimeja.
O relógio de parede a cumprimenta, parado há uma semana no ponteiro das dez.
"Preciso comprar pilhas. Ou devo deixá-lo preso? Assim escolho se quero ser dia ou se quero ser noite "
Olhar lacrimeja.
- Por quê chora?
- Cebolas.
- Mas onde elas estão que não as vejo?
Baixa a cabeça, na mão apenas faca.
- Você é cheia de camadas.
Não consegue se fatiar.

Sexo Escolar

Elvis Almeida



Vou contar uma história, mas não ache engraçado, foi um negócio inusitado, me deixou acabrunhado, se eu não for acreditado, vou ser no mínimo xingado. Se tiver lido e gostado poderia pelo menos ser um pouco aplaudido. Isso não foi mal entendido, foi um breve ocorrido, um boneco esquecido, tornou-se por todos lembrado. Eita torsinho safado! 

Numa escola afastada da cidade havia um torso humano que ficava no laboratório de Ciências.

Em algum momento deram por falta de uma das peças do torso.

A Diretora da escola, pressionada por professores e demais funcionários, teve que convocar uma reunião extraordinária, pois havia sumido um patrimônio público.

Convocada a reunião, todos presentes e atentos. A Diretora apresentou a pauta:

- Nesta reunião temos que tomar uma importante decisão, pois sumiu um patrimônio da nossa escola.

Isso gerou um rebuliço naquela sala.

Um dos presentes perguntou:

Mas que patrimônio é esse? (Como se ele não soubesse!)

A Diretora respondeu brevemente:

- Uma peça do torso no laboratório de Ciências!

Alguns sem saber o que era um torso, muito menos torso humano, nem arriscaram dizer nada, mas estavam curiosos para saber do que se tratava.

Uma professora, daquelas bem despachadas, perguntou bem alto:

- Qual seria a peça Diretora? (Como se ela também não soubesse!)

Essa pergunta e a forma como foi feita gerou um silêncio absoluto, ninguém ousou dizer nada por alguns segundos. Todos sabiam da peça, mas queriam a resolução da situação. Afinal era um patrimônio público.

A Diretora, sem saber o que falar, apontou para o tal torso humano e disse numa voz cambaleante:

- A professora de Ciências deu falta de um órgão masculino!

Nesse instante, todos se alvoroçaram novamente mexendo-se nas cadeiras. Havia trocas de olhares acusativos uns aos outros. Todos eram suspeitos no sumiço daquele patrimônio.

A merendeira disse logo:

- Ainda bem que eu fico sempre na minha “cunzinha”, mas venha cá minha gente, pra quê pegaram esse “negóço” de “tolço” masculino?

Alguns seguraram seus risos, pois o jeito da merendeira era muito engraçado.

O fato é que a diretora percebeu que não ia conseguir nada com a reunião. Toda encabulada, ela tomou a palavra e disse:

- Gente, precisamos decidir o que fazer. A situação não pode ficar sem resposta!

A Vice-diretora se adiantou:

- Bem, podemos comprar outro ou esperar um pouco, pode ser que esteja na escola, alguém pode ter guardado por engano num outro lugar!

A Diretora concordou logo, dizendo:

- Vamos esperar daí marcamos outra reunião para decidir, por ora estão todos dispensados. Obrigada pela presença!

Todos saíram imediatamente e sem dizer nada.

Passados alguns dias, a Diretora resolveu ir à escola num fim de semana. Para entrar no prédio ela tinha que ir à casa dos zeladores, pedir as chaves. Como a casa era no terreno da escola, ela foi entrando em direção à zeladoria. Ao longe ela escutava uns sons de pessoas gemendo. À medida que ia se aproximando as falas ficavam mais nítidas.

- Vai amor! Iiiiisssoooo! Que gostoso põe mais! Ai que delícia! Mais forte!

A cama batia em numa sequência compassada.

- ah, ah, aí...ahhhhhh... Não para!

O casal estava a se deliciar um do outro. Saiam inúmeros sons daquele quarto com a cortina cerrada. Era uma tarde nublada e fresca, com cheiro de brisa quente e leve.

A Diretora ficou à espreita num misto de curiosidade e desejo. Num dado momento, enquanto ouvia os sussurros quentes do marido de Dona Gina, a Diretora começou a se tocar. Passava a mão levemente em seus mamilos que estavam rijos. Em seguida, começou a lamber o próprio dedo. Sentiu seu coração acelerar e sua intimidade umedecer. Ela queria estar ali. Estava adorando aquele momento, queria sentir o cheiro do casal, observar o ambiente, o toque de pele, o sussuro...

Ela se aproximou mais um pouco para poder ver. Sentia-se cada vez mais excitada. Começou a passar as mãos em suas coxas e se se encostou na parede, espremendo-se. Aproximou-se um pouco mais enquanto ouvia o casal envolvido em gemidos, sons corporais, falas lascivas e sussurrantes...

- Nossa como a gente demorou em descobrir isso! Que delícia, dizia Dona Gina. Completou o marido:

- Vai bem devagar amor, com carinho! Isso, aaaaiiiii, continua..., vai mais! Nossa que gostooooosooo! Humm, vai...vou go...ah, ah, ahhhhhhh.

A diretora não se aguentava de desejo. Ela conseguiu se aproximar ao ponto de poder vê-los. Ela foi às nuvens, estava entre o orgasmo e o desejo do toque!
Repentinamente Dona Gina se posiciona e o Sr Denis diz:   
- Isso amor, agora você vai gostar disto. Vem cá! Ela começa a se esfregar levemente e o Sr Denis introduz um objeto nela.
A diretora ficou agitada, vendo aquilo. Então ela percebeu que o objeto era aquela peça pública que havia sumido. E, estava lá, todinha na Dona Gina. A Diretora se recompõe, e diz para si mesma:

- Que droga, hoje cheguei atrasada!










DES - NUDAR – VELAR

Tais Gonçalves de Morais

Perdoe se me atravessam as palavras e eu, honestamente, as coloco em evidência e de forma poética para ti, que supostamente pode acolhê-las, sem pretensão de que as legitime e se deixe tocar por
elas.

Me interessa a possibilidade de não deixar que a ilha da minha existência se exígua nela mesma...O que escrevo não é somente meu, a medida que se refere às experiências que me inundam...no existir.
Desnudo, desvelo, para que eu mesma enxergue, pátinas de sensações, desejos, sentimentos e vontades.

Grande e difícil é meu percurso, que busca realizar parte, que é sempre parte, do meu desejo.
Me intriga a cautela com a qual limita-te, do que não pode prever, antecipar e dizer...
Contenho o sentimento que me impele, por já saber, por meio de suas palavras, que não me olhas de onde te vejo e desejo...

Pulsa e, por mais que eu me escute, acabo por estancar meu grito, e isso não faz da vida um xercício simples.

Faz dela caminho possível, de densidades e desigualdades singulares, cheia de sentidos e, ainda ssim, acometida de pequenas possibilidades de ser compartilhadas  em suas nuances mais sensuais com quem amo...

Aberta, clara, honesta, verdadeira e desprendida do suposto saber, não sei dizer o que isso quer dizer, mas vou dizer... Amo-te!

   30/08/11

sábado, 14 de janeiro de 2012

JOGO ÉBRIO

Para Lygia Canelas


Ligia,
É só um jogo insone
Este rabisco comseu nome
e o esboço de umcorpo nu
Passada aembriagues,
eu leio a Lispector,
recito teus poemas prediletos
volto aser-te estranho.
Ligia, Ligia, Ligia...

***
Os meninos jogavam bola
e empinavam pipas
sem malicia
paracom Rita
correndo entre eles
Os homens jogampalito
bebem cachaça,
comem Rita,
Passando por entre eles
...
Quando vieram recolhê-lo
já não era mais corpo
***
Ligia,
Não ria nem leve a sério
Não te inquietes e durma
é apenas um jogo ébrio

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

DELICIA

Theobaldo chegou à balada por volta das 22h, dirigiu-se ao bar e pediu Absolut Bossa Nova, algo com vodka, morangos e tomates. Por um instante contemplou a bebida, depois a bebericou apenas para apurar o sabor: “delicia! Assim você me mata!” Exclamou levando o copo à boca. “Você acha gato?”, ouviu Theobaldo a voz ao canto do ouvido, e ao virar deu-se com Roseane, que emendava: “ai ai se eu te pego”. Theobaldo sorriu-lhe sem jeito. “Deixa que eu pago!”, emendou Roseane. Theobaldo agradeceu a gentileza e saiu em direção à pista de dança. “Ei!”, Roseane subindo nos tamancos, “vai me deixar assim, no vácuo?”  “Olha”, explicou Theobaldo, “agradeço pela bebida, confesso fiquei surpreso, mas meu namorado está vindo ali e não quero confusão... Michel, aqui! Michel...”

A PROTESE

Michelly Jhacson tinha um belo corpo: esguio, seios arredondados e firmes, não muito grandes, belas pernas e um bumbum que “só por Deus”, como dizia, Apolônio. Todos admiravam sua beleza, mesmo as meninas, que demonstravam uma pontinha de inveja. Apenas Khelly Key, com seus olhos azuis lhe era rival à altura. Quando Michelly passava, suspiravamos e nossos olhos a seguiam avaros. Michelly, no entanto encasquetara que não era tão bonita como queriamos nós. Se olhava no espelho e não se conformava: os seios, sim!, os seios não lhe agradavam, pareciam-lhe pequenos. Michelly decidiu: “devo colocar protese!”. Michelly ficou, como dizia um amigo, “a gata”. Nem mesmo Khelly Key foi lhe pario, até que, também, recorreu à mágica da cirurgia estética. Michelly agora desfilava com satisfação seu corpo por entre nós, a quem dava-nos apenas este direito: de babar por ela. Michelly não queria nada com “esses pés chatos do bairro”, como dizia. Ela sonhava com o estrelato, e vivia correndo atrás da oportunidade de participar destes reality que infestam a televisão. Uma vez chegou a participar de um programa de auditório como Garota Morango. O fato é que, desde que começaram a sugir problemas com as proteses de silicone da PPI, Michelly anda acabrunhada. Ela chegou a ligar para seu esteticista, que garantiu-lhe : “ eu trabalho com  proteses rigorosamente avaliadas e regulamentadas pelos orgãos de saúde da Europa e Estados Unidos”. Mas Michelly encasquetara e, de modo quase doentio, se auto analizava repetidamente, receiando estar carregando um mal indelével em seu corpo. Do dia pra noite  Michelly se apagou, passava por nós e percebiamos, não mais atração e desjo, mas preocupação por ela.  A beleza de Michelly desaparecera entre seus receios e o mal estar que estes receios lhe causavam, nos atingiam de alguma forma. Sofriamos com Michelly... Ontém Michelly acordou no meio da noite, levou a mão ao seio e sentiu o visgo, gelou súbito: “Meu Deus! Vazou!”. O espanto maior veio-lhe em seguida, quando sentiu algo sugando-lhe o outro seio. Um ser informe, gelatinoso, brotara de uma de suas proteses e se alimentava da outra. Michelly, passado o espanto: “menos mal, não é um cancer”.  


sábado, 7 de janeiro de 2012

Daqui não vejo o sol

                                     Por Luciano de Melo - www.anedotabulgara.blogspot.com 



PERSONAGENS


LÍVIA – Vítima do o sequestro e namorada de Binho. Entre 18 e 20 anos.



BINHO – Mentor do sequestro. Entre 20 e 22 anos.



TELECO – Líder dos sequestradores. Cerca de 30 anos.



DUDA – Sequestrador. Entre 26 e 28 anos.













CENÁRIO



O cativeiro é um cômodo mal iluminado e sujo. Os únicos móveis existentes são uma cama de solteiro e uma cadeira. Na junção entre as paredes em que ficam encostadas a cama e a porta, um chuveiro, um vaso sanitário e uma pia, encobertos por um lençol pendurado, improvisam um banheiro.



Cena 1 – Vê-se o cativeiro. Surgem gritos de ordem, como “por aqui, rápido, sobe, entra logo, vai... vai...”.  Os personagens entram em cena. Dois homens conduzem uma moça pelos braços com truculência. Partem deles os gritos de ordem. Ela está de capuz e camisola e tem as mãos amarradas. Um deles descobre o rosto dela, e vê-se que tem uma fita grudada na boca. Fazem-na sentar na cadeira. Ela está inquieta. Olha para todo o redor do cômodo e para os personagens. Os dois vêm ao centro do palco. Estão ofegantes. Conversam em sussurro.



    DUDA – Porra, cadê ele?



TELECO – Não sei, cara. Não sei. Já era prá ter chegado.



    DUDA – A gente não podia deixar ele lá, sozinho... Isso foi loucura.



TELECO – Agora já está feito. Não dá prá voltar atrás. Vamos esperar.



    DUDA – Mas e se ele não aparecer?



TELECO – (Impaciente) Não sei, porra, não sei...



    DUDA – Será que deu tudo certo, hein? A gente cumpriu tudo direitinho, né?



TELECO – É... Só falta ele. A nossa parte está feita.



    DUDA – Mas... Mas e as suspeitas? Será que não ficou nenhuma?



TELECO – Claro que não! Foi tudo na calada, chapa. (Pausa) Você viu o 

                   tamanho que ficou o porta-malas? Só grana, cara. Anel... Relógio...    

                   Pulseira... Tudo ouro fino, rapaz.



Pausa.



     DUDA – Mas e a mina aí, meu? Como é que vai ficar? (Os dois olham para

                      ela, que se assusta com o olhar deles)



TELECO – Aí é outra parada. Tem que fazer tudo como a gente combinou prá

                  não dar “xabu”.



DUDA – É... Essa vai ser foda! Mas aí, não é problema nosso. É dele.



(Voltam-se para o centro do palco)



TELECO – Cara, põe uma coisa na tua cabeça: o que a gente fez não foi só

                   roubo não, cara. É sequestro, porra.



DUDA – Mas aí é problema dele. A gente fez a nossa e trouxe prá cá o que ele

              queria. Agora... (Interrompe-se a fala com batidas ritmadas na porta,   

                como um código)



TELECO – É ele!



Cena 2 – Os dois saem do cativeiro e a luz se apaga. Um foco de luz surge  do lado de fora, ao lado da porta. Binho está com a roupa suja de sangue. Ele tira da cintura uma arma e a entrega para Teleco.



    DUDA – O quê aconteceu, velho? Que demora foi essa?



   BINHO – (Com afobação) Ela está bem? Como está ela? Eu preciso ver...



TELECO – (Interrompe Binho, segurando-o) Não, não, não, nada disso! Agora

                   não! Sossega. Deixa a mina sozinha por enquanto. Já chega de

                   susto por hoje. Não vai ajudar em nada saber que o namorado está   

                   por trás de tudo isso. Fica tranquilo que ela está bem. Tá  

                   assustada, mas é normal, certo? (Ele não responde. Teleco enfatiza

                      a pergunta) Tá certo, cara?!



BINHO – (mais calmo) Certo... Certo. Está tudo bem. (Pausa) Está feito o

serviço. 



DUDA – Matou os velhos?



BINHO – Não tô falando que o serviço está feito? (Tira do bolso um par de

brincos e um anel)



DUDA – O quê que é isso?



BINHO – São dos pais da Lívia. Um dia eu entrego prá ela.



Teleco e Duda põem a mão na cabeça, em sinal de desacordo.



  DUDA – Puta que pariu, prá quê isso? Prá quê arrancar isso deles? Qual é  

                que é, hein? Vai pagar uma de herói agora prá mina?



TELECO – (Para Duda) Para, Duda, para com isso. Deixa, deixa ele. Tem certeza que ninguém te viu?



    BINHO – Não, ninguém.



    DUDA – Cara, você fez tudo errado. Deu a maior brecha. Prá que pegar

        essas porras?



   BINHO – Não me enche, merda!



    DUDA – É prá fazer só que a gente combina, entendeu? Era prá você matar

os velhos e cair fora. Ninguém aqui combinou de trazer             “lembrancinhas”. (Irônico) Você está estragando tudo!



BINHO – Eu já falei que ninguém me viu, porra! (Guarda as joias no bolso)



TELECO – (Para eles) Chega! Eu vou falar uma coisa para os dois: a gente

entrou nessa junto e vai sair dessa junto. Se um fez cagada, todo mundo

fez cagada. Aqui, o que um faz, todo mundo responde, certo?

(Para Duda) Se ele está falando que o lado dele tá limpo, então tá limpo.

Não fica enchendo a cabeça do cara com um monte de baboseiras,

beleza? Vamos seguir o plano. (Duda aceita a condição de Teleco)

Agora, só uma coisa (para Binho): não pode vacilar. Tem que fazer só o

que a gente acertou, tá? E essa camisa aí, cheia de sangue? Matou

mesmo os dois?



BINHO – Matei... matei os dois. Cheguei até pertinho deles, prá ouvir se

estavam respirando ou não. Mas o velho tava vivo ainda, cara, e me

agarrou pela camisa... Aí tive que descarregar a arma em cima dele.



TELECO (Negando com a cabeça) – O serviço tem que ser limpo, porra. Não

tem que ver se está morto ou não, tem que eliminar! Eu cansei de falar:

acerta na cabeça! (Aponta com o dedo para a própria cabeça) Na cabeça!

É só estourar a cabeça que não tem erro, porra!



DUDA – Prá bandido é fácil falar.



TELECO (Agarra Duda pela camisa) – NÓS somos bandidos, porra. NÓS! Se um cair aqui, todo mundo cai. Agora não tem mais volta. (Para os dois) Cada um que a gente mata carrega pro resto da vida. Todo esse sangue aí (aponta pra a camisa de Binho) está em todos nós agora. Foi uma escolha nossa. Se ele quis matar os pais dela, todo mundo matou.



BINHO (Para Teleco) – Fiz isso pela Lívia e vou fazer quantas vezes for.

Ninguém vai atrapalhar o que eu sinto por ela. Ninguém!



TELECO (Para os dois) – Bem, o lance é o seguinte: até aqui, tá tudo correndo

bem. (Aponta para Binho) Ele matou os pais dela, a gente roubou a casa

e trouxe ela prá cá. Cada um fez o seu lado. (Fala para Binho) Agora,

tem uma semana pra dar um fim nesse sequestro, tá? Não vai demorar

muito e a polícia vai ta batendo aí, procurando a gente.



DUDA (Para Binho) – Você precisa agilizar e contar tudo prá namoradinha o

mais rápido possível, cara.



TELECO – Por enquanto, é o que a gente combinou: você inventou esse

sequestro para tirar ela da casa, certo?



BINHO – Certo.



DUDA – Mas precisava de ajuda prá tirar ela da casa. Aí entra a gente. (Refere-

se com o dedo para ele e Teleco).



TELECO – Nós vamos enrolando, dizendo que a negociação com o pai não

está evoluindo... Que o velho está com muitas exigências... Sei lá! Tudo

isso vai ser o tempo de você ir chegando, conversando, e falar que

deu um fim nos velhos.



BINHO – Não, não, fiquem sossegados. Ela vai entender que tudo isso que eu

fiz foi prá tirar ela daquela vida. Lá, a gente nunca ia dar certo. 

Daqui a gente some no mundo. Só nós dois.



TELECO – É... Não vai ser fácil, mas foi o que você escolheu, não foi?

(Pausa) Uma semana, cara. Uma semana.



A luz se apaga.







Cena 3 – A luz cresce aos poucos, iluminando o cativeiro. Lívia está agachada no canto da parede, chorosa. Ao seu lado, um prato de comida e talheres que parecem não terem sido tocados. Em cima da cama existe uma bolsa grande, com pertences de higiene pessoal e algumas peças de roupas femininas. No chão, ao pé da cama, uma caneca e um pote com água. Demora-se um pouco nesta imagem. Barulho de chave na porta.  Duda e Teleco entram. O primeiro tranca a porta e o segundo se aproxima de Lívia.



DUDA – Ih, nem mexeu no prato de novo.



TELECO – Já é o segundo dia que não trisca na comida, hein, menina?

(Agacha-se e põe uma colher de comida na boca) Hum, não sabe o que

está perdendo. O feijão está uma delícia! Tá a fim, Duda? (Levanta-se)



DUDA – Deixa isso aí, Teleco. Vai que ela resolve comer depois. Deve estar

com uma fome dos diabos.



TELECO – Não, não, não. (Balançando negativamente a cabeça e colocando o

prato novamente no chão.) Você viu que este lugar está empestado de

barata? É por causa da porcaria da comida que fica horas e horas aí no

chão. Tem até rato rondando pelos cantos aí. Se a dondoca não quer

comer, dane-se. (Para Lívia) Agora vai ser assim, viu, mocinha: não quer

comer, não tem comida. Se quiser, vai ter que pedir. Ouviu, Duda? (Para

ele) Não traz mais comida para a madame até ela pedir.



DUDA – Mas ela vai comer o quê, Teleco?



TELECO – (Irônico para Lívia) Rato... Barata... Pasta de dente... O que não falta é opção! (Sério para Duda) Tô de saco cheio dessa frescura toda aí, Duda.



DUDA – Mas está pegando pesado, Teleco. Não precisa. Não vê que a menina

está aí assustada com tudo isso?



TELECO – Pegando pesado o caralho, Duda. Não vê que tudo isso é manha?

Está fazendo cena desde de que chegou aqui. (Volta-se para Lívia,

apontando para o chão) Só que aqui, meu anjo, neste mundo, o que vale

é a lei do cão. Lá no seu, chorou tem viagem de luxo... Vai prá Disney...

Nessas bandas de cá, ter o que comer já é um luxo, sabia? (Pausa) Não,

com certeza você não sabe. Bem-vinda ao mundo, garota. (Para Duda)

Não aguento mais tudo isso, cara. Não vejo a hora de acabar essa

porra, viu?!



DUDA – Sossega, Teleco. Logo, logo tudo isso acaba.



LÍVIA – (Ainda agachada) O Binho não vem?



DUDA – (Para Lívia) Sei lá, porra, acho que vem.



LÍVIA – (Levantando-se) Mas onde que ele está?



DUDA – Não sei, diacho, mas já deve estar chegando. Olha, não complica

mais não, tá bom? (Segura Lívia pelo braço e puxa a cadeira para ela

sentar) Por que não come um pouco?



LÍVIA – (Desgarrando do braço de Duda e gritando) Eu não quero sentar, não

quero comer, não quero porra nenhuma! Não aguento mais! Estou há

uma semana presa neste inferno e você vem me pedir prá não complicar

mais? E dá prá complicar mais ainda? (Anda em círculos pelo cômodo)

Binho! Binho! Binho! (Esmurra a porta)



Os dois seguem os passos de Lívia. Ela está transtornada. Duda a segura pelos braços e a joga na cama. Ela fica estática, assustada com os dois. Duda se senta na cadeira.

    DUDA – Sossega, Lívia. Porra, você só complica mesmo as coisas! Ninguém

aqui tá a fim de criar problema. É só você ajudar. Agora, fica dando ataque de louca pelo quarto... Aí pira qualquer um.



     LÍVIA – (Senta na cama, respirando fundo e arrumando a roupa e os cabelos)

Tá bom... Tá bom... Tá bom. E o meu pai? Falaram com ele hoje?



TELECO – Seu pai não está querendo ajudar.



     LÍVIA – (Espantada) Como assim “não está querendo ajudar”?



TELECO – Ah, fica chorando toda hora pela grana. Eu falo “Velho, estamos

falando da tua filha”, mas o coroa não está nem aí. (Bate as mãos como sinal de pouco caso)



      LÍVIA – (De pé) Mas eu já falei que posso falar com ele. Eu juro que consigo. Eu sou a filha. Me dá uma chance!



TELECO – Não dá, Lívia. Não dá... Não dá.



LÍVIA – O que é que está acontecendo, hein? Ninguém aqui me fala nada!

Invadem a minha casa, me trazem prá este inferno e me tratam como

um animal enjaulado à base dessa porra de ração! (Aponta com os olhos

para o prato de comida) Não aguento mais viver nessa merda! (Caminha

para o banheiro improvisado e abre a cortina) Eu vou ficar doente,

sabiam? Eu vou ficar doente! Não tem água pro vaso. Fica tudo aí,

parado, juntando bicho. Não tomo banho há uma semana. Uma semana!

(Aponta para as paredes) Isso aqui não tem janela. Há uma semana que

não vejo sol. (Fica de frente para os dois, com o dedo em riste) Nem a

cadeia em que os dois vão apodrecer quando sair daqui é pior que essa

merda. (Pausa. Respiração ofegante) E vem me falar de luxo, Teleco?

Quem é você prá me falar disso? Não são vocês que querem luxo,

roubando minha família, prá viver no bem bom?



   DUDA – (Para Teleco) Eu vou descer a mão nessa menina, cara!



    LÍVIA – (Encarando Duda e dando tapas no próprio rosto) Isso, Duda, faz

isso. Me espanca, vai. Aliás, por que não faz melhor? Me mata logo,

porra. Acaba logo com isso. Não é o que todo mundo quer aqui, acabar

com tudo?



TELECO – (Segura Duda) Duda, fica na boa, cara. Não vamos perder a cabeça

agora. O Binho falou que resolve tudo hoje. De amanhã não passa.



      LÍVIA – Resolver o quê? Meu pai não quer ajudar mesmo.



     DUDA – Por quê você não cala essa boca, hein? (Solta-se de Teleco) Eu

não vou sujar minha mão com essa... Com essa vadia!



     LÍVIA – Vadia é a tua mãe, filho da puta! Sujar a mão? Sujos vocês já são

até o pescoço! Imundos! Podres! Bandidos! (cospe no chão)



Silêncio na cena. Lívia se senta na cama e põe as mãos no rosto. Duda está imóvel, no centro do palco. Teleco recolhe o prato.



TELECO – (Para Lívia) Um dia você vai saber toda a verdade, Lívia. E vai se

arrepender de todo esse monte de besteira que falou até agora.



LÍVIA – Vai à merda, Teleco. Quero ficar sozinha.



TELECO – Já estamos na merda, Lívia. Todos nós. E a culpa é sua!



LÍVIA – Ah, essa é muito boa agora. Somem da minha frente os dois!



TELECO – A culpa é sua, Lívia.



LÍVIA – Sumam daqui, porra! Vão embora! Me deixem em paz!



Enquanto Lívia grita palavras para que se retirem, começa a atirar as peças de roupa da bolsa em Teleco e Duda. Este destranca a porta. Os dois saem de cena a trancam no quarto. Lívia continua com o gritos e a atirar roupas pelo quarto. Esmurra a porta e as paredes, chorando.



LÍVIA – Pai! Pai! Faz alguma coisa, pai, pelo amor de Deus. Me tira daqui! Eu

não agüento mais! Mãe! Mãe! Me tirem daqui! Eu odeio vocês! Odeio! Binho! Binho! Eu quero ir embora!



Estas palavras são repetidas a esmo, enquanto Lívia retorna para o canto do início da cena. Agacha-se na mesma posição e abaixa a cabeça sobre os braços cruzados. As luzes diminuem até restar um foco sobre Lívia. O foco se apaga.



Cena 4 – A luz ressurge na porta. Binho entra com barras de chocolate nas mãos. O cativeiro se ilumina. Percorre com os olhos toda a bagunça no cômodo e é surpreendido com um abraço por Lívia. Nas primeiras falas os dois estarão abraçados.



LÍVIA – (chorosa) Binho, por onde você esteve este tempo todo? Não me deixa

mais sozinha aqui, pelo amor de Deus.



BINHO – Lívia... Lívia...calma. Olha, o que eu trouxe pra você. Os chocolates,

viu? (segura Lívia pelos braços) Tá tudo bem?



LÍVIA – É claro que não está nada bem, não é? Binho, senta um pouco aí.

(Binho se senta na cama e Lívia na cadeira, de frente para ele) Você não

acha que foi longe demais com essa história, Binho? Olha, prá quê as

coisas chegarem a este ponto? (aponta para o cômodo) Nós tínhamos

futuro, eu e você. Eu te falei que era difícil pro pai aceitar o namoro, não

falei? Mas eu ia dobrar o velho. E se não conseguisse, paciência. Ia ser

do nosso jeito. (Enfatiza “nosso”) Meu e seu, e não só seu. (Enfatiza “só

seu”)

BINHO – (olhando para os chocolates) Eu trouxe os chocolates que você tanto

gosta, olha... Esse aqui é branco... Tem um de trufa... Ah, tem de

brigadeiro...



LÍVIA – (interrompendo Binho) Chega, Binho! Chega! Você nunca dá a mínima

para o que eu falo, não é? E ainda acha que sempre pode me comprar

com estes chocolates! Some, me deixa sozinha com dois loucos aqui

presa e me vem com essas porcarias! (caminha em direção à cadeira e

se senta) E ainda pergunta se está tudo bem.



BINHO – (irônico) Olha, desculpa, tá, Lívia? Pô, nunca o que eu faço está bom

prá você! (Joga os chocolates na cama) Estou tentando manter as coisas

da melhor forma possível, mas você não coopera...



LÍVIA – Não precisa me dizer nada isso que o Duda já me falou hoje, tá?



BINHO – Eles estiveram aqui hoje?.



LÍVIA – Eles sempre estão aqui, Binho, prá me infernizar. (Levanta-se) Isso está

ficando insuportável, Binho! Cada vez que os dois aparecem por aqui, é

só merda que acontece. Já foram chegando olhando pro prato. Aí, como

eu nem trisquei naquela droga, já começam “dondoca daqui, fresquinha

dali”, me dando lição de moral. Agora vou tomar lição de moral de

bandido, Binho?



BINHO – Lívia, eles não são bandidos. São meus amigos.



LÍVIA – (com riso irônico) Putz, era só o que me faltava. (Pausa) Binho, você

agora é amigo bandido, não é? Mas é claro! Você também é um!



BINHO – (segura Lívia) Lívia, você sabe muito bem o porquê fiz tudo isso. Fiz

por você!



LÍVIA – Ah, é? Vai saber se não foi prá secar a grana do meu pai?



BINHO – Lívia, não brinca com isso!



LÍVIA – Quem está brincado aqui é você, Binho, e essa corja que você

arrumou! Você já imaginou como deve estar minha família agora? Você

já imaginou como eu estou agora, Binho? (Começa a chorar. Binho a

abraça)



BINHO – Lívia, eu juro para você que logo, logo tudo isso vai terminar.

Prometo. Quanto aos seus pais, não se preocupe com eles. Eles estão

bem.



LÍVIA – (Encarando Binho) Como assim, bem? Pensa na situação, Binho. (No

centro do palco) O namorado invade a casa, sequestra a filha do casal, a

mantém num cativeiro sabe lá Deus onde e como e você vem me falar

que estão bem? Não é muito pra cabeça, não?



BINHO – (Se encaminha para a jarra no chão. Enche a caneca de água e serve

Lívia. A fala ocorre nesta ação) Lívia, eu sei que eu não mereço mais um

pingo da sua confiança, mas acredite: não se preocupe com os seus

pais. Na medida do possível, estão bem. Eles sabem de tudo que está

se passando aqui, pode ter certeza, e sabem do amor que você tem por

eles. (Pausa) Eles também te amam muito, Lívia.



LÍVIA – (enquanto toma a água) Você tem falado com eles, Binho?



BINHO – (Cabisbaixo) O suficiente para ter certeza do que estou falando.



LÍVIA – Binho, eu não acredito que você pôs tudo a perder. Daqui a dois anos

eu terminava a faculdade, e aí a vida era só nós dois. Prá quê atropelar

tudo assim?



BINHO – É, mas aí, doutora Lívia, como que ia ser? Você trabalhando em

clínica e eu numa fábrica de plástico. O que eu tiro em mês com hora-

extra você ganha em três consultas.



LÍVIA – Mas e daí, Binho? Nós estaríamos casados, seríamos uma família. Entre a gente não tem essa de quem ganha mais ou quem ganha menos. É tudo igual. É nosso!



BINHO – Igual nada, Lívia. Um dia ia estourar. Seus amigos teriam pena de

mim, iam tirar o maior sarro. (Apontando com o dedo) Ih, olha lá o marido

da Lívia, o montador de tomada. E os seus pais, hein? Com o maior

orgulho, com o peito cheio, diriam para a família: este é o Binho,

especialista na fabricação de fios de extensão!



LÍVIA – Besteira, Binho. (Nega com a cabeça).



BINHO – (Levanta-se) Besteira uma ova, Lívia. A gente nunca ia dar certo

assim. Até quando eu ia aguentar isso?



LÍVIA – Ah, é? E até quando eu (Enfatiza “eu”) vou aguentar isso, hein?

(Levanta-se e aponta para Binho) Você não passa de um moleque

egoísta, Binho. Vai atropelando tudo porque pela tua cabeça acha está

tudo certo, não é? Se as coisas não são como você pensa, você logo dá

um jeitinho, não é não? (Pausa. Lívia respira fundo, passa a mão sobre a

cabeça) Binho, vê se me escuta pelo menos dessa vez: acaba logo com

esse sequestro, pelo amor de Deus!



BINHO – Garota, será que você não entende? Não percebe que fiz tudo isso

por você? Ou você acha que eu estou contente com tudo isso? Lívia, era

a única chance que eu tinha prá trazer você para perto de mim. Não me

importa mais nada, a não ser você. Eu não posso voltar atrás, agora. É

um caminho sem volta.



LÍVIA – E o que adiantou? Você fez tudo errado, Binho. Nessa história toda que

você armou, você é o sequestrador e eu sou a vítima. Vê se entende.

Você vai ficar anos e anos preso numa cadeia. Depois, quando sair,

como é que vai ser a tua vida, de ex-presidiário. E a minha? Você por

acaso neste tempo pensou um pouquinho na minha vida? Pensou,

Binho?



BINHO – Eu sempre pensei na gente, Lívia, e não em mim ou em você. Fiz e

faria tudo de novo pelo nosso amor. E os nossos planos? E as nossas

juras? E o amor eterno? Será que nem disso você ainda lembra?



LÍVIA – Binho, isso não é o caso. 



BINHO – (grita) E qual é o caso então, hein. Será que ainda me ama, Lívia?



LÍVIA – Binho, não começa...



BINHO – (fala enquanto recolhe as roupas jogadas pelo chão e guarda-as na

bolsa. Lívia só observa) Engraçada você, não é Lívia? Tem sempre a

resposta pronta para tudo. Você sempre foi a ponderada, sempre

pensou em todos os detalhes das coisas. (Pausa) Já eu não, né? Eu sou

o desajustado, o afobado, nunca penso nas conseqüências... (irônico)

Tá aí, é uma boa justificativa para as nossas diferenças, certo Lívia?

(Joga as roupas que tem no chão) Só que a única diferença aqui, entre

nós, é só uma: eu sempre te amei mais! Peitei toda a tua família pelo

amor que sinto por você. Sou capaz de tudo por você, de tudo! E o que

recebo em troca? Calma, ponderação, paciência. (Volta a recolher as

roupas) Sabe o que eu acho que te dói mais nessa história, Lívia? É que

você poderia ter evitado tudo isso, se não tivesse medo de assumir o

que sentia por mim.



LÍVIA – Claro que não, Binho.



BINHO – Claro que sim, Lívia. Ia ser muito doído reconhecer que os seus pais

estavam certos e que a gente não servia para ficar junto mesmo. Mais

uma vez o teu velho jogaria na tua cara que você não passa de uma

criança mimada e que sem ele você não é nada!



LÍVIA – (chorando) Para com isso, Binho. Para!



BINHO – (Encara Lívia) Você sabe que sempre foi assim, Lívia. Todo esse poço

de sabedoria que você parece ser, na verdade é ilusório. Você acha que

tem opinião, que sabe de tudo, mas, que saber? Não sabe de nada. É

fácil conceituar o “de fora” como louco, bandido, egoísta, presidiário... O

feijão que é uma droga, o chocolate que é uma porcaria... E o que mais,

hein? Você foi paparicada por todos naquela casa. Todo mundo te

protegia. (Pausa) Até um intruso aparecer. Ou você acha que um dia sua

família ia me aceitar, hein, Lívia? Nunca! Eu sou diferente de vocês. Não

tenho diploma, não sou rico, não sou paparicado, não é? Ou você ia

sempre cair naquele discursinho de “Ele não serve prá você, filha, é

pobre, sem estudo...”? Porra, e não é seu pai que sempre se orgulhou que veio debaixo, que não tinha nada, era um zé ninguém como eu e que com muito esforço venceu na vida? O medo deles, Lívia, era que você se apaixonasse por mim e todo aquele plano da filha perfeita, protegida, fosse por água abaixo por causa de um mané, que apareceu pra se aproveitar da situação. Mas eu nunca liguei pra merda do seu dinheiro. Nunca! Eu sempre quis só você e cheguei até aqui por você. Como você diz, eu nunca penso nas conseqüências mesmo. (Pausa) É, mas, como sempre eu estou errado e você está certa: eu sou o sequestrador e você é a vítima.



Binho arruma a mala. Lívia senta na cadeira. Binho senta na cama, próximo a ela. Silêncio.



LÍVIA – Você deve achar o meu pai horrível, não é?



BINHO – Não, não, Lívia. Muito pelo contrário. No lugar dele, faria a mesma

coisa. Ia proteger a minha filha o máximo que eu pudesse. (Pausa) O

problema é que eu não sou o seu pai, e, por isso, não penso em você

como pai. (Pausa) Preciso ir embora. (Levanta-se)



   LÍVIA – (Abraça Binho) Não, você não tem que ir embora, Binho. Você tem

que ficar comigo, aqui.



BINHO – (Encarando-a) Lívia, não posso. A barra tá ficando cada vez mais

pesada. Todo mundo já sabe do sequestro. Tá em tudo quanto é jornal

por aí. A polícia já sabe de tudo, quem somos nós, de onde viemos...

Você acha que eu e os caras podemos ir para casa assim? Claro que

não. Estamos enfiados num cubículo parecido com esse. Eu também

não aguento mais, Lívia.



   LÍVIA – Então era essa a verdade?



BINHO – Que verdade?



  LÍVIA – O Teleco falou que um dia eu ia saber toda a verdade. E aí ia me

arrepender de tudo que eu fiz. É essa a verdade, não é, que já está todo

mundo sabendo?



BINHO – (respira fundo) Pode ser, Lívia, pode ser.



   LÍVIA – Pô, Binho, não me deixa aqui sozinha. (Abraça-o)



BINHO – Lívia... Lívia... eu preciso ir, é sério. Olha, isso não durar muito não,

tá? Descansa um pouco que mais tarde eu estou de volta.



Binho dá um beijo na testa de Lívia e sai de cena. Ela está no centro do palco. Suspiros de cansaço. Passa as mãos na cabeça e nos cabelos. Começa a dobrar as roupas na bolsa. Guarda os chocolates também na bolsa. Entra no banheiro improvisado. Sai escovando os dentes e anda lentamente pelo palco, de um lado para o outro. Vai para o banheiro e enxágua a boca. Barulho de água. Volta para o palco. Coloca a bolsa no chão e deita na cama. Olha para o teto. Silêncio. A  iluminação vai aos poucos caindo até ficar à meia-luz. 



Cena 5 – As luzes aumentam aos poucos. A porta do cativeiro é aberta. Duda entra com um embrulho enrolado num pano de mesa e tranca a porta. Lívia está na cama, dormindo, sob um lençol. Duda põe o objeto sobre a cadeira e, de pé, vela o sono de Lívia. Ele puxa levemente o lençol e Lívia desperta.



LÍVIA – (grita) O que é que você quer aqui? (Puxa de volta o lençol sobre o

corpo)



DUDA – Bom dia, princesa. É assim que você me recebe logo de manhã?



LÍVIA – Não me vem com esse sorrisinho idiota na cara, Duda.



DUDA – Hei, hei, calma garota. Eu só trouxe o seu café. (Duda desamarra o

embrulho. Nele, há uma faquinha de serra, uma colher, pão, um pote de

margarina e um copo de iogurte). (Irônico) Olha só o capricho disso tudo

prá você , Lívia. (Mostra o pão para Lívia)



LÍVIA – Guarde seus caprichos para a sua laia, vagabundo. Não quero merda

nenhuma que venha de gente como você!



DUDA – Dobra essa língua, viu, vadia? (Joga o pão em Lívia) É foda servir de

babá esse tempo todo prá uma cadela que nem você!



LÍVIA – (Levanta-se da cama e vai para o centro do palco) Dá o fora, vai! Some!

Se veio aqui só prá estragar o dia, já conseguiu. Agora, some! Rua! Vai!



DUDA – (Caminha em direção à Lívia) Fala baixo, garota. (Pausa) Baixa a bola.

Você acha o quê, hein? (Agarra Lívia pelos braços) Você tá achando que

pode falar assim, comigo, me tocando daqui que nem cachorro. Eu não

sou frouxo que nem teu namorado não. Comigo a conversa é outra!



LÏVIA – Vai se foder! (Cospe na cara de Duda)



Duda ri ironicamente e vai parando aos poucos, até voltar a ficar sério. Dá um tapa na cara de Lívia. Ela cai.



DUDA – Vagabunda! Piranha! Vai cuspir na puta que te pariu!



LÍVIA – (No chão, aos gritos) Vai embora, porra! (Chorando) Vai! Some daqui!



DUDA – Embora prá quê, Lívia? Agora que a coisa tá ficando boa. (Tira o cinto da calça)



LÍVIA – Duda! Duda! Pára com isso. Chega!



DUDA – Ah, tá com medo agora, é? Como é que é, não escutei direito... vccê

me chamou de vagabundo?



LÍVIA (Levantando-se) – Duda, pára...



DUDA – Deita! (Estala o cinto no chão. Lívia obedece) Eu mandei levantar?



LÍVIA – Olha, esquece, tá? Eu tô nervosa... (Pausa) Eu... Eu não quis te

ofender, tá bom? Só queria que você fosse embora agora, por favor.



DUDA (Se encaminha para Lívia. Estica o cinto com as mãos) – Como muda,

né, Lívia? Tá até pedindo “por favor”. (Pausa) De bruços!



LÍVIA – O quê?



DUDA – De bruços, porra! Tá surda!



LÍVIA – Duda... O que é que tá acontecendo...



DUDA – De bruços, porra! (Põe Lívia de bruços) 



LÍVIA – Não... Não faz isso... (Segura os punhos de Lívia sobre as costas. Tenta

prende-los com o cinto. Com os pés, afasta as pernas dela.)



DUDA – Agora você pode gritar que eu não ligo.



LÍVIA – Não, não faz isso!



Duda se ajoelha e tenta abrir a calça, enquanto ainda segura com uma das mãos os punhos de Lívia. Ela consegue virar-se e se separar de Duda. Vai até a cadeira e pega a faquinha de serra. Ele se levanta assustado, com as mãos para cima. Lívia o ameaça.



DUDA – Lívia, calma.



LíVIA – Covarde! Filho da puta!



DUDA – Lívia, abaixa essa faca.



LÍVIA – Tu é muito macho mesmo, né? Vai, quer me violentar agora? Vem... Que eu rasgo teu pescoço!



DUDA – Lívia, vamos esquecer, tá bom?



LÍVIA – Esquecer? Esquecer? Se eu não estou com essa faca você tinha me

estuprado agora, covarde! (Pausa) Demente! Eu tenho nojo de você!

Nojo! Nojo!



DUDA – Olha, baixa essa faca, tá? Eu já estou de saída. Não precisa mais disso, tá bom?



LÍVIA – Não, não, pode ficar aqui. Quem vai agora sou eu. Me passa a chave!



DUDA – O quê?



LÍVIA – Me passa a chave da porra do barraco!



DUDA – Não, eu não posso.



LÍVIA – Ah, dar tapa na cara e violentar mulher pode, né? Dá a merda da chave

agora!



DUDA – Lívia... Lívia... Eu sei... Eu sei da minha mancada, mas isso é uma

coisa impossível. (Pausa) Eu não posso deixar você ir embora.



LÍVIA – Foda-se se você pode ou não pode. Eu quero a chave agora ou eu

enterro essa faca na sua garganta! (Avança com a faca)



DUDA – Porra, Lívia, calma com essa faca aí... (Pausa) Tá, tá... Eu... Eu te dar

a chave...



LÍVIA – Anda, anda, vai...



Duda põe as mãos para trás, fingindo procurar a chave nos bolsos. Quando volta com as mãos para frente, surpreende Lívia empunhando uma arma. Lívia se assusta e deixa a faca cair no chão.



DUDA – Tá aqui sua chave, Lívia. Vem pegar. (Rindo) Você achava mesmo

que ia me ameaçar com uma faquinha de cortar pão, é? Vem cá, eu

nasci ontem? Tu é muito idiota mesmo!



LÍVIA – Covarde! Só põe banca com arma mesmo!



DUDA – Isso é problema meu, garota! Cala essa boca!



Cena 6 – Barulho de chave na porta. Lívia e Duda olham para a porta. Teleco entra com vassoura e desinfetante nas mãos. Ele surpreende Duda apontando a arma para Lívia.



TELECO – Que merda é essa, Duda?



DUDA – Não se mete, Teleco.



TELECO (sacando uma arma e apontando para Duda) – Olha como fala comigo,

seu moleque. Abaixa essa porra agora!



Duda abaixa a arma, encarando Teleco. Guarda a arma na cintura. Antes de sair de cena, manda um beijo para Lívia e encara novamente Teleco. Este guarda a arma na cintura.



TELECO – O quê que está acontecendo por aqui, hein?



Lívia não responde. Respira fundo, ajeita o cabelo e a roupa. Serve-se com um pouco da água da caneca.



TELECO – (Entregando a vassoura e o desinfetante para Lívia) Toma. Dá um

jeito nessa nojeira toda aí, vai.



LÍVIA – Ai... (Respira fundo) Vamos lá! O outro agora está preocupado com a

limpeza do recinto. Bem, pelo menos me distraio nessa merda.



Lívia vai até o banheiro. Barulho de água e esfregação. Ela pronuncia expressões de nojo. Teleco anda pelo cativeiro. Senta-se na cadeira. Acende um cigarro. Começa a andar pelo palco. Lívia traz a vassoura e uma lata de lixo e começa a varrer o cômodo.



TELECO – E aí, conversaram muito, você e o Binho?



LÍVIA (Varrendo) – Coisas da gente que não são do seu interesse.



TELECO – Tudo o que acontece aqui diz respeito a todo mundo, Lívia.



LÍVIA (Para Teleco) – Ah é? Que bom. Então acho que as conversas com o

meu pai também dizem respeito a mim, não é?



TELECO – Na hora certa você vai saber de tudo.



LÍVIA (Irônica) – Isso, aí você me manda alguém avisar. (Pausa) Melhor, passa

o jornal por debaixo da porta. Assim, nem precisa se dar ao trabalho de

vir falar comigo. (Lívia volta a varrer o chão)



TELECO – Você é sempre assim arrogante, né?



Silêncio. Lívia pára de varrer e volta para Teleco.



LÍVIA – É... É verdade. Sabe o que eu estava pensando? Todo mundo aqui dá

palpite na minha vida, não é? Que eu sou isso, que eu sou aquilo, que

eu não posso falar desse jeito...  (Pausa) Quer dizer, além de me

socarem nesse cubículo há uma semana ainda tenho que ouvir poucas e

boas de vocês, né? Aguentar tudo que é tipo de humilhação.



TELECO – (Apaga o cigarro, joga no lixo e senta-se na cadeira) Sabe que você

até que é engraçada, Lívia? Olha, pode parecer uma loucura, mas, ao

contrário do que você pensa, eu não tenho nada contra você não. Eu já

cansei de falar para o Binho acabar com tudo isso, esquecer esse

sequestro e ver no que dá.



LÍVIA (Senta-se na cama) – Ah, mas era só isso que me faltava agora. Primeiro

aparece um psicopata. Agora, a compaixão do bandido pela vítima. (Lívia ri forçosamente, irônica. Teleco apenas observa). É engraçado mesmo,

Teleco. Muito engraçado. (Ri um pouco mais até ficar séria). Vocês vão conseguir me deixar doente, sabia? Esse tempo todo aqui, trancada neste quarto, deve ter afetado minha cabeça. Eu... Eu não tô conseguindo entender onde você quer chegar.



TELECO – Chegar onde, Lívia?



     LÍVIA – Ora, por favor. Esse papinho de “não tenho nada contra você”, “já

pedi pro Binho acabar com tudo”, prá mim não cola. Isso tudo é

conversa de malandro, Teleco. Tá louco pra meter a mão na grana da

minha família e sumir pelo mundo. Vem cá, vocês não estão nem aí para

mim. (Pausa) Quer saber? Se não fosse o Binho, já tinham acabado com

a minha raça aqui mesmo. E quem ia descobrir? Até porque sabe lá em

que fim de mundo nós estamos. (Pausa) Por falar nisso, ninguém

percebe que tem algo de errado nessa casa, não? Ninguém vê vocês

chegando com prato de comida, vassoura, a casa trancada o dia

inteiro...?



TELECO – Isso não é da sua conta, Lívia.



     LÍVIA – Tudo o que acontece aqui diz respeito a todo mundo, não é,

Teleco?



TELECO – Escuta aqui. Fora dessas paredes, (Aponta para si) a gente resolve

como as coisas devem ser e isso não é da sua conta. Já te falei que falta

pouco prá acabar essa merda. Eu não minto quando eu falo que não

tenho nada contra você. Também já falei pro Binho acabar com isso

tudo. É só você perguntar quando ele aparecer.



     LÍVIA – (Levanta-se e leva o lixo para o banheiro. Nessa ação ocorre a fala)

Prá quê toda essa frescura toda? Por que não para com essa

encenação?

TELECO – (Pausa. Levanta-se em direção à porta) Eu acho que você devia

perguntar prá outra pessoa que é que está encenando aqui.



      LÍVIA – Eu não estou entendendo.



TELECO – Se alguém está fazendo cena aqui, não sou eu. Conversa com o

Binho. Ele vai te explicar tudo. Aliás, já passou do tempo pra ele fazer

isso.



      LÍVIA – Eu não estou entendendo nada. Como assim, passou do tempo?



TELECO – Você diz que a gente não revela nada prá você, não é? Pois eu vou

te revelar uma coisa: a polícia já sabe onde a gente está. É questão de

tempo pra subir o morro e bater nessa porta. (Aponta para a porta)



        LÍVIA – Mas e a minha família? Eles já pagaram alguma coisa? Vocês

conversaram com eles? Como que a polícia já sabe de tudo?



TELECO – Bem, isso é o Binho que vai te responder. Eu não posso te falar

mais nada. Mais dia, menos dia, tudo isso acaba.



LÍVIA – Como assim? E os meus pais? Você conversou com eles?



Teleco sai de cena e tranca a porta. Lívia fica no centro do palco, estática. As luzes se apagam.



Cena 7 – As luzes se acendem. Lívia continua no centro do palco. A porta se abre. Binho entra. Lívia corre para abraçá-lo. A porta fica aberta.



LÍVIA – Meu amor, senti tanto a sua falta... Onde é que você esteve? Eu fiquei

com tanto medo que você não voltasse... O Teleco disse que a polícia já

descobriu o cativeiro e... E que é questão de tempo eles chegarem até

aqui.



BINHO – (Ainda abraçados) Lívia, eu preciso falar com você. (Leva Lívia para a

cadeira). Senta aqui, senta.



LÍVIA – Binho, eu senti tanto medo... Eu pensei que nunca mais fosse te ver.



BINHO – Lívia, eu nem sei como eu vou te falar...



  LÍVIA – (Eufórica) – Não importa o quê você vai me falar. Eu não quero ouvir.

Olha, eu já pensei em tudo, meu amor. Sabe, eu vou dizer que a gente

planejou tudo isso... (Pausa) É... Eu e você. Fizemos tudo isso prá ficar

juntos. Juntos. A gente diz que os outros dois iam nos ajudar a fugir,

mas quiseram roubar a casa.



BINHO – Lívia...



LÍVIA – É, Binho. Vai sobrar só prá eles, que já são bandidos. A gente, não. Eu

convenço os meus pais, pode ficar tranqüilo. E daí... Ah, daí a gente vai

fazer a nossa vida...



BINHO (Gritando) – Pára, Lívia... Chega! Não tem nada disso, Lívia, nada

disso! Para um pouco e me ouve. Não existe mais  “a nossa vida “!

(Enfatiza “a nossa vida”)



LÍVIA – Como assim, Binho, não tem nossa vida? Eu já pensei em tudo. Eu falo

com os meus pais...



BINHO – Cala a boca, Lívia. Não tem nossa vida, não tem pais... O sequestro

acabou, Lívia... Acabou!



Binho se levanta. Anda inquieto. Lívia só observa.



BINHO – Se você quer saber, nunca teve seqüestro. Isso aqui que você está

vendo não existe! Nunca existiu!



LÍVIA (De pé) – Binho, eu não estou entendendo...



BINHO – Lívia, isso aqui nunca existiu. Nunca teve negociação... Nada, Nada...

Foi tudo invenção minha!



LÍVIA – Então, Binho... Onde é que estão os meus pais?



Binho tira do bolso um par de brincos e um anel e entrega para Lívia. Lívia olha para as joias e depois para Binho.



  LÍVIA – (chorosa) O quê significa isso, Binho?



BINHO – Eu matei seus pais, Lívia.



Sinais de sirene surgem.



LÍVIA – (Ajoelha-se) Você o quê, Binho?



BINHO – Eu matei os seus pais, Lívia. Eles nunca iam me aceitar. Você

também nunca me deu certeza que queria viver comigo. Mas eu tive

sempre certeza. Eram eles ou eu. Então eu planejei essa farsa, esse

sequestro, até que tivesse coragem para te contar. Achava que você

aqui, comigo, aos poucos, fosse entendendo o meu amor e aceitasse.

Mas é claro que hoje vejo que seria impossível. Eu sou um assassino,

Lívia. Eu planejei tudo isso. Eu sou o único culpado.



LÍVIA – (Em prantos) Ah, meu Deus!... Meu pai!... Minha mãe!... (Pausa) Deus

nos perdoe! Que amor maldito eu criei!



Os sinais de sirene aumentam.



BINHO – Lívia, você não tem mais nada para fazer aqui, comigo. Pode ir. A

porta está aberta. Acabou.



LÍVIA – Binho!... Binho!... Binho!... Prá que estragar toda a minha vida, pra

quê? (Pausa) Você não tinha direito disso.



Binho tenta erguê-la do chão. Lívia os esmurra. Binho a contém com um abraço.



BINHO – (Chorando) Lívia... Lívia... Vai embora. Me deixa aqui! Vai!



LÍVIA – Ir embora... (Pausa) Ir embora prá onde, Binho? Me diz, ir embora prá

onde?



BINHO – A polícia já tá perto... Vai, Lívia...



Binho saca uma arma.



BINHO – Vai, Lívia... Eu não vou sair vivo daqui! Vai, porra!



Lívia se encaminha lentamente para a porta, com o anel e os brincos nas mãos. Até a metade do caminho, ainda olha para Binho. Na porta, ela para por um instante. Fecha a porta e volta. Abraça Binho.



BINHO – O quê que você está fazendo, porra? Vai embora!



LÍVIA – Não, Binho. Você é tudo o que eu tenho agora!



BINHO – Mas... Mas eu matei tua família!



LÍVIA – Nós matamos! Nós matamos!



As sirenes aumentam. Gritos fora da casa “É aqui! É aqui! É aqui!”. O cativeiro parece cercado. Binho e Lívia estão abraçados. Ele aponta a arma para a porta. A porta é arrombada com um chute. Neste momento, ouvem-se tiros e as luzes se apagam.



FIM